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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Quando os zoólogos batizam novas espécies, inventam nomes que a maioria de nós nunca vai entender ou usar. Para os zooignorantes como eu, um grilo que, lá na grama, faz cri-cri para atrair a fêmea é só um bichinho barulhento avisando que a noite está gostosa. E olha que o nome do bichinho barulhento talvez valha uma crônica ou uma conversa entre amigos. Veja o caso do Vanzoliniella sambophila, que traduzido para bom português quer dizer algo como "Vanzolinizinho amante do samba". Vanzo era o apelido do zoólogo Paulo Vanzolini, que foi homenageado pelo cientista que descobriu o grilo, talvez um seu ex-aluno. O lado "amante do samba" do Vanzolini resultou em composições como esta:

"Cheguei na boca da noite, saí de madrugada / Eu não disse que ficava nem você perguntou nada / Na hora que eu ia indo, dormia tão descansada / Respiração tão macia, morena nem parecia / Que a fronha estava molhada."

Encontrei a referência ao grilinho amante do samba na revista Ciência Hoje, da SBPC. Eu pesquisava a variedade de animais batizados em homenagem a Vanzolini, que foi um grande cientista. Tem de tudo: rãzinhas de pele lustrosa marrom e azul-turquesa; rãzinhas que cabem na palma da mão, de charmosas bolinhas amarelas; micos de cara esperta; mosquinhas inofensivas; cobras assustadoras e lagartos esquisitos. A família Vanzolini inclui até um minúsculo piolho, que vive escondido no meio da plumagem de pássaros.

Já no repertório musical de Vanzolini não tem lugar para bicho pequeno. Nos sambas, ele fala do bicho homem e do bicho mulher, ambos sempre no cio. Os homens são muito machos, não do tipo ostensivo, mas do tipo pragmático ("Ainda se fosse brava, porém competente / Se atrás da bronca viesse a roupa limpa, o café quente"). As mulheres são todas sem-vergonhas ("Por causa dessa mulher / Foi que se finou José / Dia quinze que passou"), mentirosas ("Mente, ainda é uma saída / uma hipótese de vida"). Todos, homens e mulheres, sofrem horrores ("Ali onde eu chorei qualquer um chorava / Dar a volta por cima que eu dei / Quero ver quem dava").

Carlinhos Vergueiro gravou um CD com dez composições do Vanzolini, todas as que estou citando aqui. Vanzolini, que morreu em abril, aos 89 anos, era dessas figuras que crescem por causa das aparentes contradições na biografia. Criança, não gostava de estudar, mas acabou fazendo Medicina na USP e doutorado em Harvard porque queria trabalhar com cobras. Sim, cobras, e também lagartos. Foi pesquisador de campo, daqueles que passam semanas embrenhados no mato. Mas também viveu a boemia paulistana, tendo como companheiros sambistas e malandros. Um desses companheiros foi um paranaense do Norte Pioneiro, lavrador que, ao se mudar para São Paulo, passou a ser chamado de Paraná. Era o Luís Carlos Paraná. Vanzolini não cantava nem tocava instrumentos. Dizia não entender nada de música, não conhecer a linguagem usada pelos músicos. Compunha mentalmente e memorizava. Aí entrava em cena o Paraná ou outro parceiro que transformava aquilo em partitura.

Dá para escrever o dia inteiro sobre Vanzolini e seus interesses, que foram muitos. Suponho que um deles era observar gente, assim como observava os bichos. Se não, como conseguiria escrever uma letra tão sofisticada como a de Ronda, que é a saga da mulher que procura seu homem na noite e prevê que o encontrará "bebendo com outras mulheres / rolando um dadinho, jogando bilhar"? Curiosamente, os homens das canções de Vanzolini sofrem estoicamente, mas a mulher (acho que a única voz feminina é a que aparece em Ronda) termina seu drama com uma ameaça. O dia em que ela encontrar o malandro, vai ter a famosa "cena de sangue num bar da Avenida São João".

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