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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Gavetas são objetos. Ou espaços dentro de objetos. Mas parecem mini- cérebros, parciais e re­­ve­­ladores. Há gavetas que guardam contas a pagar e recibos. Há gavetas que abrigam manuais de aparelhos eletrônicos. Há aquelas que protegem as fotos, as cartas e os cartões – de quem tem idade suficiente para ter recebido cartas e cartões de papel. Há quem tenha gavetas para as peças finas do enxoval da casa: toalhas bordadas pela avó, uma peça rendada trazida de Burano, um pano de prato pintado pela empregada doméstica e que foi presenteado em um Natal distante.

São mini-cérebros porque refletem o que se passa na cabeça e no coração de alguém. Até a organização é reveladora do que se passa na vida do dono naqueles dias. Sim, naqueles dias apenas. Porque não dá para julgar uma pessoa por uma única olhada na gaveta aberta. A bagunça pode ser indício de um momento conturbado em que falta tempo para tudo, em que se enfrenta uma doença na família ou uma sobrecarga de trabalho. Os papéis vão chegando e vão sendo jogados em seu depositório. Em outra fase, pode ser que aquele sujeito seja ordeiro e cuidadoso. A bagunça temporária deve estar deixando-o mais angustiado, com a sensação de que está perdendo o controle quando precisa de um papel e tem de vasculhar tudo para encontrá-lo.

Gavetas não são como estantes de livros. Essas, sim, sempre dão um retrato fiel do proprietário porque não mudam tão rápido, refletem momentos sem apagar o conjunto da história. Livros são reveladores até quando estão fe­­chados, empoeirados na estante. Gavetas refletem um momento, uma quinzena, um semestre. São Polaroides que vão perder a cor e se tornar nubladas, sem nitidez.

Quando me passa pela cabeça que eu poderia morrer de repente (pensamento fugidio e incômodo, que felizmente aparece pouco), acabo lembrando as gavetas. Alguém vai ter de esvaziá-las e vai saber mais de mim do que eu gostaria de revelar para qualquer pessoa que fosse. Vai se perguntar por que guardo um ursinho de plástico vermelho e uma carteira de uma biblioteca que frequentei em outro país. Vai se perguntar por que nunca fechei aquela conta bancária e ainda tenho um dinheirinho parado lá. Pior, vai encontrar meus diários. Eu faço diários, geralmente com longos pe­­ríodos de interrupção. Mas são sinceros, e isso é um perigo.

(Um amigo me contou que fazia diários minuciosos durante suas viagens de turismo. Com medo de esquecer, contava o que viu, quanto pagou nas compras, o que deu certo e o que o chateou. Sua mãe pedia para ler os cadernos e, assim, curtir a viagem também. Por isso ele criou o artifício de escrever "conversei com" toda vez em que contava que havia feito sexo com fulana ou sicrana. Era um diário insincero.)

Se alguém conhecer nossos pensamentos mais secretos vai levar um susto. Talvez vá nos achar melhor e mais interessante. Talvez se espante com nossa mesquinhez. Prefiro que me descubram apaixonada e confusa. Ou segura e insatisfeita. Tudo menos superficial: "Ela era aquilo que conhecíamos. Abrir a gaveta não revelou nada excepcional". Isso, sim, seria triste por­­que a humanidade está sempre um pouco sufocada em cada um de nós, controlada pela ne­­cessidade de se comportar e de se conduzir de forma útil. Pe­­lo medo de assustar os outros. Os sonhos e desejos sobrevivem nas estantes de livros folheados, nas gavetas entulhadas de objetos aparentemente sem valor e nos diários que nos matariam de vergonha se fossem lidos. Em al­­gum lugar, os sonhos e desejos sobrevivem, felizmente.

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