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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Em um momento de desespero, sem saber o que fazer para colocar ordem na vida, ele procurou um mapa. Existe um mapa que nos mostre aonde ir? Onde encontrar sossego, paz de espírito? Não encontrou.

Em um momento de alegria, de novo a ideia do mapa. Desta vez quis fazer um guia, uma rosa dos ventos para dar à filha e ajudá-la a encontrar coisas boas que estão por aí e que ele estava convencido de que uns veem e outros não. Um projeto pretensioso, sem dúvida. Mas ele tendia a ter arroubos de heroísmo. E adorava mapas.

Começou fazendo uma lista: algumas canções, alguns livros, comidas, um lugar indefinido ("uma praia no fim da tarde"), outro lugar um pouco menos indefinido ("uma tarde de sábado no seu canto favorito da casa"), o primeiro gole da cerveja gelada, a primeira mordida no quindim. Tudo tinha de ser em doses pequenas. Em grandes doses, até um samba do Cartola cansa.

Incluía torresmo no mapa? Torresmo é tão bom, tão deliciosamente pururuca, que ele queria recomendar à filha que comesse torresmo, dissesse o que dissesse o cardiologista. A dúvida o atormentava. Não é sensato um pai recomendar à filha que coma torresmo por mais mineiro que ele seja.

Veio a hora de colocar os tesouros no mapa e ele tentou ser mais específico. Sugiro os títulos de livro? Pode ser. Tem livro que impressiona todo mundo, como A Divina Comédia. Mas não conseguia imaginar a filha lendo A Divina Comédia. Não era o gênero dela. Melhor ficar com Pergunte ao Pó na tradução do Roberto Muggiati. Vou sugerir um poema do Drummond, unzinho pelo menos.

E anotou: "Não dramatizes, não invoques, não indagues. / Não percas tempo em mentir / Não te aborreças / Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo / é algo imprestável."

Visitar a família – coloco ou não no mapa? Melhor colocar, afinal família nos segue pela vida toda. Todos os demais correm o risco de ficar pelo caminho. Não quero minha menina sozinha.

Lista feita e refeita, percebeu que ela nunca ficaria pronta. Melhor seria se resumir ao básico: manteve o John Fante traduzido pelo Muggiati, uma música, um poema, a mordida no quindim, o pôr do sol, os versos do Drummond (que resumiam quase tudo que ele queria dizer para ela com aquele "Não dramatizes, não invoques, não indagues. / Não percas tempo em mentir. / Não te aborreças").

Com seus traços desajeitados, colocou tudo no papel na forma de continentes, mares e oceanos. O torresmo virou uma ilhota. Ficou tudo feio, rabiscado, infantil. Passou a limpo. Duas, três vezes. Usou lápis de cor. Mais infantil ainda. Rasgou. Refez. Deu uma nova chance ao lápis de cor. Tirou novas cores da caixa e usou no mapa. No mapa da vida boa, da boa vida que ele desejava para ela.

Ficou lindo. Guardou na gaveta esperando a hora certa de entregar. Falaria algo? Não, o mapa devia dispensar palavras e explicações. Mandar pelo correio tem seu charme. Mas, e se extraviasse? Entregar já ou deixar de herança? Se o mapa servia para alguma coisa era melhor ser usado já.

Escreveu um bilhete: "Levei meses fazendo este mapa. Para você". Prendeu com um clipe no papel do mapa. Espe­rou seis meses pelo momento apropriado, sempre adiado pelo medo de não ser compreendido, de parecer ridículo.

Chegou o aniversário dele. A filha apareceu sorridente para abraçá-lo. Espere, tenho algo para você. Puxou-a pelo braço até a cômoda, tirou o mapa da gaveta, bilhetinho junto, e entregou. O ar perplexo no rosto dela deixou-o satisfeito. Fiz minha parte.

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