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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Há objetos que fazem parte de um tempo que passou e que por algum acaso ficam para contar a história. “No misterioso livro do teu ser / a mesma história tantas vezes lida!” O que faço com as roupas de minha mãe que não consigo pôr fora? Com a morte dela, essas peças ficaram sós, injustificáveis. Não eram mais usadas pela mãe doente, mas fazia sentido que continuassem guardadas, por uma questão de respeito. Agora não há por que mantê-las, mas parece cruel me desfazer delas. Cruel com quem? Com a mãe ou com a filha órfã? Tanto faz. É uma expressão de sentimentalismo, eu sei. O tempo cura, o tempo vai curar.

Agarramo-nos à peça de roupa que ficou como se ela nos mantivesse conectados àquela pessoa que não está mais aqui

A peça de roupa usada centenas de vezes ao longo de muitos anos, a outra feita sob medida para uma ocasião especial. Lembro do dia em que comprei para ela o conjunto marrom em uma malharia na Alameda dos Nhambiquaras, em São Paulo. Em quantas fotos minha mãe aparece com aquele casaquinho de lã cinza? E a camisa colorida, que vestiu todas as semanas por não sei quantos verões e primaveras? Revirando as fotos que agora temos de compartilhar entre os irmãos, encontrei várias vezes o casaco cinza e a blusa colorida que ela mesma costurou. Lembro da loja onde comprou o tecido (uma malha buclê); era na rua Dr. Pedrosa e não existe mais. O casaquinho cinza? Uma loja elegante, para senhoras, na Rua Comendador Araújo. Também não existe mais.

Esse “não existe mais” é que me tira do eixo. Tanta coisa deixou de existir que o que ficou de outros tempos ganha contornos mágicos. Ou fantasmagóricos. Agarramo-nos à peça de roupa que ficou como se ela nos mantivesse conectados àquela pessoa que não está mais aqui. Digo “nós” porque sei que não sou só eu. De certa forma esses objetos nos conectam mesmo a outros tempos, a pessoas que não estão mais do nosso lado. Mas até que ponto essa conexão não é doentia?

Pensando nisso, nessa necessidade de deixar a vida seguir seu rumo, confortada pela ideia de que importante mesmo foram os momentos passados juntos, me preparo para o desapego, para o dia em que colocarei a peça de roupa em uma sacola e a entregarei para outra pessoa e não pensarei mais nela.

São de Florbela Espanca os versos no início do texto. Os leitores parecem gostar quando publico poesia. Sendo assim, seguem outros versos da portuguesa, do poema “Se tu viesses ver-me”:

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

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