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Trânsito é assunto recorrente entre moradores de qualquer cidade. Geralmente se fala sobre o comportamento dos outros motoristas, a quem sempre temos tantas críticas a fazer. Até em cidades pequenas se fala disso. Qual o morador de Anahy (3 mil habitantes) que nunca ouviu alguém dizer: "O filho da dona Fulana passa na minha rua cantando pneu!"? Esse é um estágio intermediário na relação da cidade e de seus moradores com o trânsito. O estágio seguinte é falar dos congestionamentos. E o último estágio — tomara! — deve ser conversar sobre formas de deslocar-se sem tirar o carro da garagem.

Claro que os três estágios se misturam. Os motoristas continuam fazendo bobagens e se irritando mutuamente ao mesmo tempo em que se espremem em ruas congestionadas. É verdade que, quanto mais congestionamento, menos espaço há para cada um demonstrar sua "personalidade" de motorista, já que literalmente desaparece o terreno para manobra.

Sempre tive a impressão de que o motorista de São Paulo tem um jeito bovino. E uso a palavra "bovino" sem querer ofender ninguém. Sentado em seu carro que não sai do lugar, o paulistano me parece meio resignado, meio embotado. Agora entendo por quê. A rotina de semana após semana no trânsito emperrado, com o carro espremido entre outros veículos, sentindo-se totalmente impotente, faz com que o motorista resigne-se para não enlouquecer. Só uma boa dose de embotamento mental nos livra do desespero.

Eu ainda estou na fase em que é possível enlouquecer. Parada na Carlos de Carvalho, na Visconde de Guarapuava ou na Cândido Hartmann, vendo o tempo passar no relógio, engatando a primeira para chegar a 15, 20 quilômetros por hora e depois parar de novo, sinto o pânico se aproximar. Como gosto de caminhar, sempre penso que eu estaria melhor a pé, andando na calçada, cansada talvez, mas livre. Poderia escolher a rua mais agradável, o lado da calçada mais ensolarado. Seria livre. Dirigir tornou-se uma tarefa penosa.

Os curitibanos estão passando por esse processo de "bovinização". Estamos aprendendo inconscientemente a nos comportar como o rebanho que é levado de volta para o curral no fim do dia, boi encostado no boi, devagar para não provocar estouro na boiada. Em princípio, encaremos o trânsito pesado com a resignação de morador de cidade grande, "rica", onde certo grau de prosperidade econômica permite que muita gente realize o sonho básico do brasileiro: ter um automóvel.

Mas antes que o processo de bovinização se complete, temos tempo para pensar sobre o que está acontecendo com a nossa cidade e as nossas vidas. Tem de ser assim? Tenho alternativa para meus deslocamentos diários? A administração pública está encaminhando a questão de forma a nos dar opções de transporte ou também embarcou na ilusão de que o automóvel é o novo senhor das cidades, para o qual as ruas devem ser reservadas e todos os caminhos abertos?

É hora de pensar e de ser um pouco maluquinho. De lembrar aqueles filmes em que a massa humana é controlada por um senhor absoluto que impõe um estilo de vida desumano e industrial. O herói é o cara que se arrisca a pensar ou sentir diferente e a perceber que o que parece normal e inevitável não serve para nós. Todas as forças do mal acabam caindo sobre o herói. Felizmente, nossa situação não é tão grave. Nossa forma de resistência é pensar. Pensar se há formas alternativas para ir e vir; questionar quando nos oferecem políticas públicas que parecem feitas para atender a nossos desejos, mas não levam em conta a inviabilidade do desejo individual (automóvel) que se sobrepõe ao desejo coletivo (uma cidade que flui).

Marleth Silva é jornalista.

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