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Se a solidão fosse um fungo, ela começaria a crescer quando o sol se põe na tarde de sábado, incomodaria muito durante a noite e cobriria tudo na tarde de domingo. Na segunda-feira, quando os solitários saem para trabalhar ou apenas para pagar contas, o fungo se enfraqueceria. O fungo atinge algumas pessoas, estejam elas acompanhadas ou não – outras não se sentem sozinhas mesmo vivendo na cela de um mosteiro. O ambiente físico favorece a proliferação do fungo. Um quarto e sala no Centro é pior que imóveis ensolarados. Apartamentos são piores que casas. Metrópoles, do que cidades médias ou pequenas.

A solidão é perturbadora. O jornalista José Maria Mayrink sentiu isso na pele quando produziu uma série de reportagens sobre solitários para o jornal O Estado de S. Paulo. Foi em 1982 e o livro que reúne os textos (Solidão) foi reeditado pela editora Geração. Ler hoje sobre a solidão do início dos anos 80 leva a algumas constatações. A primeira delas é de que as coisas melhoraram para os solitários – esta é a minha leitura, uma opinião muito pessoal, é claro. A segunda constatação é de que mudou o cenário da solidão. Em 82 havia o susto com a cidade grande (no caso do livro, São Paulo), uma nostalgia sutil de um estilo de vida que a modernidade estava engolindo. Diversas vezes os personagens ouvidos pelo repórter se referem à cidade como um elemento responsável por suas dores. Em 2014, com a maioria dos brasileiros vivendo em cidades e, mais que isso, sem ter tido nenhum contato com a vida rural, a urbanidade é uma regra e um desejo. Buscar a vida tranquila de um lugar menor é para os alternativos, para os ousados até. Normal é viver na cidade, seja de que tamanho for, e por isso ela não assusta mais.

Outra conclusão que a comparação inspira é de que a mudança enorme nos costumes nas últimas três décadas derrubou muros que isolavam pessoas. Os "desquitados" ainda buscavam uma forma de se movimentar na sociedade dos anos 80 (a lei que criou o divórcio é de dezembro de 1977, portanto apenas cinco anos antes da reportagem de Mayrink). Divorciados, gays e "solteironas" eram pessoas cerceadas pelos costumes. Por serem diferentes do padrão desejado, deviam viver na invisibilidade. E a invisibilidade é sempre muito solitária.

A tecnologia já era vista como o monstro assustador, que mantinha as pessoas alienadas e solitárias dentro de casa. Isso mais de dez anos antes de a internet comercial chegar ao Brasil e na época em que telefone ainda era aquele aparelho preto ou cinza preso na tomada. O rádio e a televisão eram grandes vilões, na opinião dos psicólogos e psiquiatras ouvidos pelo repórter. Por outro lado, era a esses aparelhos que os solitários recorriam para ouvir uma voz humana, para saber o que ocorria lá fora. Algumas pessoas ouvidas pelo repórter se distraíam trocando cartas com amigos de outras cidades, muitos dos quais nem conheciam pessoalmente. Uma mulher contou que, nas noites de sábado, escrevia para as 15 pessoas com quem se correspondia. Era uma versão mais lenta e mais exigente das interações via Facebook ou Instagram, que tomam tanto tempo das pessoas nos nossos dias.

Na essência, a solidão que o repórter encontrou em São Paulo em 1982 é a mesma que alguém descreveria neste mês de agosto: a dor da incomunicabilidade, de não ter quem queira ouvir sua voz, seja porque você é novo na cidade, porque está no presídio, porque é um idoso isolado socialmente, um recém-divorciado que sente falta de uma companheira e percebe que não é fácil encontrar alguém, um adolescente em conflito com o mundo à sua volta ou um adulto sem companhia para se divertir. Ou ainda um padre que foi levado pelo trabalho para longe de sua terra e agora envelhece em meio a uma nova comunidade. Ah, como pode ser dura a tarde de domingo para este religioso solitário! – nos conta o repórter.

A grande ousadia, a grande chance de escapar da solidão naqueles meses de 1982, era ter coragem de admitir que ela existia (é verdade que nem todos compreendiam a confissão dos solitários. Uma mulher que escreveu ao jornal contando que se identificou com a reportagem porque vivia só e sofria com a solidão recebeu propostas de homens para encontros em motéis). Mas os que escaparam do fungo venenoso usaram como arma a exposição ao sol, como o advogado que criou um grupo de divorciados para ajudar outros e se ajudar.

A busca pelo sol é mais aceita agora, por isso é que acredito que houve progressos.

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