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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

O que tem uma história a ver com a outra? Avalie, leitor.

História 1: Dois co­­nhecidos se encontram. Conversa vai, conversa vem, um deles, o Ribas, oferece um conselho ao amigo: escreva suas lembranças, registre os fatos mais significativos de sua vida. Um dia seus filhos vão querer saber coisas sobre a família e você não vai estar mais aí para contar. Isso aconteceu com o próprio Ribas, que quando quis detalhes sobre sua vida escolar, não tinha mais pai e mãe para perguntar.

História 2: Uma leitora, Ra­­quel, me escreve a propósito do texto da semana passada, em que falo sobre o prolongamento da vida a qualquer preço. Como tradutora, ela acompanhou uma palestra do oncologista americano William Breitbart. Ele e al­­guns colegas procuraram ajudar os pacientes terminais a ter uma boa morte. Conta Raquel, com tanta graça, que pedi autorização para reproduzir o texto do e-mail: "conversavam com o pa­­ciente e a família, procurando descobrir o que ainda gostariam de fazer: rezar, ler, ver filmes, ou­­vir música, se possível sair para dançar, viajar, comer uma boa comida, beber um bom vinho e, especialmente, manter e/ou reatar relacionamentos, dizer o que ainda não tinha sido dito, consertar o que precisava de conserto. Os pacientes que fizeram isso, em geral, viveram em mé­­dia um ano a mais do que aqueles que ficaram em uma cama cercados de tecnologia e sem cuidado emocional. Tiveram tempo de ver nascer mais um neto, ou ir a um casamento, ou comemorar o último aniversário cercados de amigos."

Raquel ficou impressionada com uma analogia feita pelo oncologista, que comparou a morte com um muro cinzento e alto. Disse ele: algumas pessoas se espatifam no muro sem aviso prévio ao morrer de repente. Outras vão se aproximando do muro aos poucos, envelhecendo e/ou fi­­cando doentes. Aí restam duas opções: ou ficar olhando para o muro sem graça onde não há nada para ver, ou olhar para trás e ver a vida que se viveu. Con­­clusão do médico: "enquanto é tempo, escrevam uma história de vida para terem algo para apreciar quando estiverem chegando ao muro".

Quando ouvi uma história, lembrei-me da outra. Parecia que estava lendo capítulos do mesmo livro. Mas por quê? O que o conselho do Ribas tem a ver com o relato da Raquel? Acho que ambos falam em dar o devido valor a situações que podem até ser corriqueiras, mas são ricas. Tão ricas que constituem a pessoa que nós somos e que merecem ser registradas por escrito para que não se percam. Alguém aí, entre os leitores, confia totalmente em sua própria memória?

Ribas fala em escrever no sentido literal do verbo: anotar fatos que aconteceram na sua vida para não esquecê-los e, um dia, saciar a curiosidade de quem te ama e quer saber mais sobre você.

O oncologista usa "escrever" no sentido figurado, como sinônimo de fazer acontecer, de não deixar passar em branco, de viver. A banalidade em que estão mergulhados a maioria dos nossos atos no dia a dia faz com que quase tudo que é mais gostoso pareça desimportante. O relato de quem acompanha pessoas na hora em que elas "batem no mu­­ro" indica o contrário: coisas pequenas, sem heroísmo ou glória, como bater papo com amigos ou dançar loucamente com as crianças, revelam-se as mais gratificantes. Aleluia! Afinal, quantos momentos "de glória" qualquer um de nós tem ao longo da vida?

Em uma tradução livre e muito pessoal das duas histórias, sugiro uma frase para resumi-las: "todo mundo pode escrever um grande livro". Tá bom assim?

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