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Em Cotoco, um livro para adolescentes lançado no Brasil neste ano, um me­­nino branco fala de sua vida na África do Sul do fim dos anos 80. Nelson Mandela negociava com o governo o fim do apartheid. Enquanto isso, a pressão internacional em favor de sua soltura, depois de 27 anos de prisão, dava resultados. Quando ficou evidente que o líder negro seria libertado, os brancos se apavoraram: eles estavam certos de que Man­­dela sairia raivoso da prisão e colocaria os negros (a maioria da população do país) para vingar o castigo que lhe foi imposto por ser contra a segregação. No livro, o pai do personagem Cotoco chega a fazer uma barricada em torno da casa com medo "deles". Mas "eles" não atacam os brancos, mesmo depois que Mandela, em 1990, sai da prisão.

Em outro livro lançado neste ano, Conversas que Tive Comigo, estão reunidas anotações e cartas que Mandela escreveu na prisão. Fica claro o motivo para o temor dos brancos sul-africanos: como se não bastasse a detenção, o governo do apartheid foi particularmente cruel com Mandela. As visitas eram semestrais e duravam apenas 30 minutos. As correspondências eram controladas pela direção da prisão, que com frequência exigia que ele reescrevesse trechos; outras vezes sumiam com as cartas. Mesmo diante dos sumiços, Mandela insistia em escrever. Em uma carta às duas filhas pequenas, diz que sabe que elas não estão recebendo tudo que lhes envia, mas continua a escrever mesmo assim. Quando a mãe de Mandela morreu, ele pediu autorização para ir ao sepultamento – não obteve resposta. Meses depois, seu primogênito morreu em um acidente de automóvel. De novo o pedido para ir ao funeral foi ignorado. Em compensação, quando algo ruim acontecia com os Mandela, como batidas policiais na casa da família ou um acidente com Winnie, a esposa dele, os guardas deixavam recortes de jornal com a notícia na cela.

Diante de tanta dureza, esperava-se uma explosão de raiva e vingança quando Mandela saísse da prisão. Mas não há raiva em Mandela e – pelo menos para mim – é o que há de mais impressionante na história dele. Isso deve explicar por que foi ele o homem escolhido por ambos os lados da querela para ser o negociador. A situação da África do Sul naquele momento lembrava muito a do fim da ditadura militar no Brasil. A mudança era inevitável, mas havia uma direita aguerrida que usava de violência para desequilibrar o processo e extremistas do movimento negro que resistiam ao comando pacífico de Mandela.

E por que a ausência de raiva em Mandela? Pelas anotações, dá para levantar algumas hipóteses. Uma primeira hipótese é que ele estava protegido por uma herança cultural muito forte. Criado em uma comunidade rural, uma tribo que girava em torno do comprometimento mútuo, traz valores definidos. Os conceitos de honra, coragem e responsabilidade estruturam sua visão de mundo. Ele escapou da crise de identidade que enfraquece grupos em período de transição, como os indígenas quando se aproximam dos brancos e os moradores da zona rural quando migram para as grandes cidades. É um homem do campo e está orgulhoso disso.

Uma segunda hipótese é que Mandela se protegia do efeito irritante das circunstâncias porque sempre olhava o mundo por uma perspectiva histórica. Em várias ocasiões, cita a História para explicar para si próprio o que está acontecendo e justificar a situação desumana que seu povo enfrenta. A História faz justiça aos honestos, dizia ele aos interlocutores. É questão de tempo.

Também coloca em um contexto maior, histórico, as ações humanas. Ao falar de um juiz que não autorizou visitas na prisão, ele escreve às filhas: "Nunca é prudente isolar indivíduos e jogar a culpa sobre seus ombros... Onde há sistemas envolvidos, a bondade dos indivíduos é irrelevante". E conclui: "O sistema como um todo precisa mudar. Só assim os homens bons terão a oportunidade de servir seus compatriotas plenamente e bem". E ao imaginar o futuro, quando o "sistema" tiver mudado, ele diz: "Poderemos até convidar o magistrado para o jantar. Só não sei onde iremos conseguir o dinheiro para o jantar".

A própria prisão pode ter eliminado a raiva de Mandela. Isolado em uma ilha, com uma vida rotineira em que sua única atividade era quebrar pedras, o advogado Mandela usou o tempo livre para ler e meditar. "...a cela é um lugar ideal para aprendermos a nos conhecer", escreveu para a esposa. "O desenvolvimento (...) é inconcebível sem uma séria introspecção, sem o conhecimento de nós mesmos, de nossas fraquezas e nossos erros." Pelo jeito, nesse processo de vasculhar-se, ele foi duro e encontrou muitas fraquezas: "Às vezes, acho que a Criação me usou para dar ao mundo um exemplo de homem medíocre, no sentido estrito do termo".

Por fim, dá para cogitar que Nelson Mandela tenha nascido assim, sem propensão para a raiva e para a amargura.

Não sou equipada com ferramentas teóricas para tentar explicar Mandela, por isso só levanto hipóteses. Quero crer que cada uma delas explica um pouco esse fenômeno do século 20, que causa espanto por nunca ter feito drama nem se colocado como um coitado, muito menos como alguém especial. A grandeza esteve dentro dele durante esses 92 anos que já viveu, e ele não se deslumbrou com ela porque está convencido de que todo mundo, lá no fundo, é tão grande quanto ele.

Estou saindo de férias. Até fevereiro, leitores.

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