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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

"Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento"

Manuel Bandeira tinha alumbramentos – ai de quem não tem! Como a vida é chata sem essas descobertas que parecem mágicas, que descortinam a beleza gigantesca que está ali, ao nosso dispor, e não sabíamos.

Eu dizia que Manuel tinha alumbramentos e ele usava com sabedoria esta palavra, que agora anda rara. Usou nesses versos aí de cima, de Evocação do Recife, comentários sobre a cidade que viu na infância, talvez ainda no fim do século 19, e usou também como título de um poema que alguns acham místico e eu entendo como sendo um desabafo sensual. "Eu vi os céus! Eu vi os céus / eu via-a nua... toda nua!" Como antes, na meninice, de novo o alumbramento do poeta foi causado pela visão de um corpo nu.

Tive um alumbramento esta semana. Ganhei de meu irmão Manoel (com a vogal o na segunda sílaba, diferentemente do prenome do Bandeira) 50 Poetas Escolhidos, em uma edição da Cosac Naify que vem acompanhada de um CD com gravações do próprio autor. Esses registros foram feitos nos anos 50 para o selo Festa, que lançou vários discos, no formato LP, com poetas declamando seus poemas. As gravações vendiam bem, o que faz a gente imaginar brasileiros sentados na sala de estar ouvindo a poesia de Drummond, de Bandeira, de Pablo Neruda, às vezes lidas pelos poetas, às vezes por atores. Na radiola encaixada em um móvel de madeira e pés-palito ou no toca-discos portátil. A sala se enchia de ruídos quando a agulha encostava no vinil -- de ruídos e de poesia.

Quem eram esses brasileiros que compravam LPs de poesia? A que hora do dia sentavam para escutar os versos de Drummond? Os adolescentes sentiam um arrepio na nuca ao ouvir a voz de um idoso dizendo "eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos"?

A voz de Bandeira vem em algumas das faixas forte e clara e a gravação é limpa, sem ruídos. Em outras ele soa como um idoso em uma gravação muito antiga, com zunidos e até com vozes intrometidas que se ouve ao fundo. É uma buzina que me distraiu enquanto prestava atenção nos versos de Profundamente? É uma xícara encostando-se ao pires que faz aquele tilintar ao mesmo tempo em que ele se pergunta para que tanto sofrimento "se lá fora o vento é um canto na noite?" Passava um avião no momento em que ele avisava que "os anjos não entendem os homens"? E como soa convincente a voz que diz: "Vão demolir esta casa, mas meu quarto vai ficar / não como forma imperfeita / neste mundo de aparências: / Vai ficar na eternidade, / Com seus livros, seus quadros, / Intacto, suspenso no ar!". Quantos quartos não existem mais e entretanto sobrevivem nas memórias de quem passou por eles?

Ouvi no carro, enquanto dirigia, o recital de Manuel Bandeira. Foi um alumbramento!

Devíamos todos rodar por aí ouvindo versos. Haveria mais acidentes de trânsito porque estaríamos distraídos? Não posso prever, mas iríamos muito mais longe, ainda que o deslocamento continuasse sendo entre o Centro e Santa Felicidade. A poesia é uma viagem e os poemas têm uma força maior quando lidos em voz alta. Ninguém mais declama poemas, o que é uma pena. Ouça a voz de velho sábio de Bandeira dizendo que só em Deus as almas podem encontrar satisfação: "Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo / Porque os corpos se entendem, mas as almas não" e me conte se ele não te inspira. Uma inspiração perigosa, me diz você, sobre a marotice do poema Arte de Amar. Se a poesia te der ideias perigosas, agradeça ao poeta. Que é um tédio viver sem ideias perigosas.

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