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Vários dias consecutivos com chuva e me senti como uma moradora de Macondo, a vila onde vivem os personagens de Cem Anos de Solidão. No livro de García Márquez são cinco anos de chuva. Tá certo, aqui é menos; uma semana, dez dias. O suficiente para deixar desolados alguns de nós, entre eles esta que vos escreve. Vou ao supermercado e, bobamente, me surpreendo de ver outros caminhando por lá. Tinha saído de casa com a sensação de que todo mundo desaparecera, como os moradores de Macondo que abandonaram a cidade quando a chuva fez apodrecer os bananais.

Estava me sentindo um personagem da família Buendia quando, por coincidência, me deparei com a notícia de que García Márquez, aos 85 anos, já não reconhece os amigos. Segundo a indiscrição de um deles, o escritor colombiano estaria com algum tipo de demência senil, provavelmente Alzheimer. Fiquei triste por García Márquez. O Alzheimer produz um fim de vida muito difícil. Se Gabo realmente tem a doença, é, para mim, mais um argumento contra a crença de que ela pode ser afastada com muita atividade mental. O escritor certamente usou muito o cérebro ao longo da vida e isso não o poupou da doença. O mesmo se pode dizer sobre outras tantas vítimas.

A história de que mentes ativas se protegem da senilidade me incomoda porque, nas entrelinhas, pode-se ler que aquele que adoece não se cuidou direito. Em última instância, que tem alguma culpa pela doença. Isso é muito cruel.

Mais sorte que García Márquez teve o Ivan Lessa, que não foi tão longe (morreu com 77 anos), mas tampouco foi traído pelos neurônios. Na sexta-feira em que ele morreu, o site da BBC publicou seu último texto falando do amigo frasista e que também se foi neste ano, o Millôr Fernandes.

Aliás, este meu texto está parecendo um obituário. Não era essa a intenção. A intenção é falar de alhos (gente inteligente) e de bugalhos (a chuva que nos deixa melancólicos quando cai por uma semana seguida). Melancólicos e até maluquinhos... Lembra-se do conto Chuva, do Somerset Maugham? Um missionário retido em uma ilha pelo aguaceiro das Monções acaba transtornado pela chuva intermitente e pela presença de uma prostituta. Chuva e sexo foram demais para o homem, que acaba... Deixa para lá. Não vou contar o final porque talvez o leitor que não conhece o livro vá atrás dele. Não quero roubar o prazer da novidade.

Voltemos ao Ivan Lessa, que conseguiu trabalhar até sua última semana de vida e que forneceu bastante estímulo para os nossos cérebros. Era divertido e inteligente de uma forma ligeira e espontânea. Dê uma olhada no site da BBC ou nos três livros dele. Tem ainda uma coletânea dividida com Mario Sergio Conti, Eles Foram para Petrópolis. Ivan tinha aquelas sacadas que não funcionam se não forem naturais. Ou o sujeito nasce com um cérebro capaz daquelas frases ou não. O mesmo se pode dizer do García Márquez. Ou o sujeito nasce com um cérebro capaz de criar O Amor nos Tempos do Cólera ou não. Que esse cérebro brilhante termine destruído, neurônio por neurônio, é uma dessas ironias da vida com as quais nós, humanos, temos de conviver.

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