• Carregando...

A primeira pessoa que viu o estranho comportamento das aves foi o carteiro. Comentou com uma vizinha que os fios de iluminação pública, que formavam um bico naquela esquina, estavam cheios de pombas e pardais, e que ele não via isso em nenhum outro lugar. A vizinha então constatou que apenas naquela extensão as aves pousavam e esperavam. Esperavam o quê? – ela se perguntou.

Morava na casa uma senhora que, perdendo o marido anos atrás, restara sozinha, pois bem antes os filhos tinham se mudado para uma cidade maior. No começo, eles apareciam em todo feriado, depois passaram a visitá-la só no Natal e, por fim, deixaram de voltar à cidade. A viúva tinha boa condição financeira e levava existência frugal. Além da própria aposentadoria, recebia a do finado, que Deus o tenha.

Não eram daquele bairro. O marido vendera umas propriedades, juntara um dinheiro disperso em várias cadernetas de poupança, medo de deixar as economias em um único banco, para comprar a casa, casa imensa, com cinco quartos, onde o casal passou a residir.

A mulher resistira um pouco, gostava do outro bairro, mais afastado do centro, é verdade, mas onde conhecia todas as pessoas, a maioria desde o nascimento. E tinha um medo inconfessável – o de morrer depois da mudança. Os antigos diziam que mudar de casa na velhice era provocar a morte e ela se lembrava de casos de parentes e amigos sobre os quais caíra a maldição. Temia morrer naquela casa enorme para um casal que cada dia ocupava menos espaço no mundo.

– Para que uma casa tão grande? – perguntou ao marido.

– Sonho da juventude.

Ela suspirou fundo e aceitou a mudança e a falta de amigos.

Antes de receber qualquer visita, o marido amanheceu morto. Os primeiros visitantes foram os antigos vizinhos, que vieram de longe para velar o defunto. Do bairro em que ela agora vivia não apareceu ninguém, mas as pessoas saíram na porta de casa quando o cortejo passou, ela no primeiro carro, de um dos filhos, logo atrás do veículo funerário. Queria ter ido ao lado do caixão, mas os filhos protestaram.

– Não fica bem, mãe.

Depois da morte do marido, ela quase não saía de casa, vivendo com as cortinas e os portões fechados. Um entregador do mercado do centro trazia as compras toda a semana, em grandes caixas de papelão, aguçando a curiosidade dos vizinhos.

– Por que uma mulher seca come tanto?

Logo alguém chegou à conclusão de que ela era uma bruxa. Os alimentos deveriam servir para algum ritual. Semanas depois, já havia uma versão que dava como certo que o marido fora envenenado pela esposa. As histórias iam aumentando. A vizinha alertada pelo carteiro deu a prova incontestável.

– Olhem os fios de luz, só os dela estão cheios de pássaros.

À noite, todo mundo passou a ouvir o pio sinistro de coruja. E as crianças recém-nascidas se viravam no berço, incomodadas com a proximidade do mal. Uma mãe não agüentou e chorou ao perceber que, por causa das aves, seu filhinho não tinha mais o sono tranqüilo. O marido disse ser bobagem. Invencionice desse povo tonto. Mas o ódio do bairro tinha encontrado um alvo.

Os meninos desviavam o caminho da escola para passar em frente da casa. Começaram jogando pedra nos pássaros, que devolviam a agressão com rajadas líquidas de fezes. Nunca uma calçada ficara tão coberta de dejetos. Mais um sinal satânico. Os pássaros demarcavam o território da velha. Não mexessem com ela, aconselhavam as mães. Mas os filhos tornaram-se mais ousados e começaram a atirar pedras no telhado, nas venezianas de madeira, na parede, no muro e na porta. Em poucos meses, a casa parecia ter passado por um bombardeio. O quintal era um amontoado de pedras, cacos de tijolo, pedaços de ferro.

Nunca ouviram um protesto da velha, que agora não saía nem no quintal da frente. Só a viam quando chegava o entregador, toda sexta-feira, com as caixas de comida.

– O que tanto come essa bruaca?

Uma manhã, quando os meninos iam para a escola, passando antes pela casa para alguma maldade, viram que os pássaros tinham partido. Saíram gritando que a velha matara as aves.

Durante a semana que se seguiu, não havia mais asas inquietas nos fios. E uma chuva intensa lavou a calçada, levando para os bueiros a crosta de fezes.

Só bem depois da fuga misteriosa das aves é que o entregador do mercado, intrigado com a ausência de ligações da cliente, e estando no bairro para uma entrega, resolveu fazer uma visita.

Bateu palmas e ninguém atendeu. Como o portão estivesse aberto, apesar das agressões ela nunca o trancava, o entregador entrou no quintal dos fundos e viu a porta da cozinha escancarada. Estranhou também a sujeira e o cheiro de coisa podre. Quando se aproximou mais, viu o corpo da senhora caído no jardim. Ela estava seca, parecia os restos de um pássaro frágil.

Sem saber a quem chamar, avisou os vizinhos e em pouco tempo a casa se encheu. Era a primeira vez que o bairro fazia uma visita. Os intrusos percorreram a casa e não encontraram nenhum caldeirão de bruxa, nenhum indício do temido ofício. Não deram muita atenção ao corpo, que estava sendo recolhido pelo IML.

Alguém perguntou ao entregador o que tanto a velha comprava no mercado.

– Quirera de milho, alpiste, ração, uns poucos pacotes de bolacha e café. Ela gostava de tratar dos pássaros – ele falou, comovido.

Mas já não o ouviam, atentos às histórias. Uma vizinha contava como, na divisa do muro dela, que se limitava com a casa das aves, todas as plantas tinham morrido. Outra narrou que ouvia gritos demoníacos vindos dali. Alguém fez o sinal da cruz. Uma mãe brigou com o filho, não devia estar ouvindo aquelas histórias, depois não iria dormir.

Aos poucos, a multidão foi saindo da casa, limpando os pés no asfalto.

A senhora acabou enterrada com o marido, sem a presença dos filhos, só localizados uma semana depois.

Os filhos viajaram para visitar o túmulo dos pais e, antes da partida definitiva, colocaram a casa à venda.

Até hoje não apareceu comprador.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]