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"Mas ali estava o roceiro que havia se deixado encantar pela cidade, por suas novidades. Ele então sentia a dor nos pés comidos pelo couro bruto da botina, retirava aquele estorvo, jogava dentro do saco, ou seguia com ele nas mãos, percorrendo desconsolado o caminho de volta."

Fazia tempo que eu não sofria com bolhas no calcanhar, pois sempre uso sapatos macios. Na última compra, por falta de paciência, comprei um par extremamente duro. E viajei com ele logo em seguida, ganhando dois machucados imensos. Enquanto andava com os incômodos calçados, eu me sentia o próprio caipira que ia à cidade nos sábados para suas compras e para embebedar-se.

Chegavam cedo, calças com barra curta, de pular-brejo, camisas mal costuradas, botinas sem meia, mas tudo limpo. Nas cerealistas na entrada da cidade, vendiam uns sacos de feijão, de arroz, algumas galinhas, ou qualquer outra coisa, reforçando o dinheiro que traziam no bolso.

E seguiam para o comércio central, em busca dos mantimentos, algum tecido, um ou outro instrumento. Daí em diante, era a festa. Não almoçavam, mas comiam pão com paçoquinha ou mortadela, já tomando as primeiras doses de pinga. Em poucas horas, o arremedo de civilização estava desfeito. Camisa aberta, calça suja, muito suor, a poeira no rosto, voltava às origens o roceiro. Mais umas doses de pinga e ele já se sentava no chão, descansando do ziguezaguear pelos bares, até parar no mais perigoso deles, os das mulheres da vida.

Se chegava ali ainda com algum dinheiro, este logo desapareceria. As mulheres bebiam tudo, deixando o homem sem rumo e dinheiro – que ele saía esgotado da função toda desses jogos, abatido pelo álcool e pelo cansaço. Começava então um perambular louco pela cidade, talvez tivesse fome, mas não lhe restava nada além das parcas compras aninhadas no saco que, pela manhã, era branco, mas agora estava sujo de pó e sinal de mãos e terra e tudo. Aferrava-se a esse pertence e, súbito, já noite entrada, sentia a urgência de voltar ao mato, de colocar o pé na estrada. Nos bares no fim da cidade, não havia mais ninguém, não encontraria carona a essa hora, os mais ajuizados já estavam em casa, nos grotões iluminados apenas pelos lampiões e pelos pirilampos, se fosse época destes.

Mas ali estava o roceiro que havia se deixado encantar pela cidade, por suas novidades. Ele então sentia a dor nos pés comidos pelo couro bruto da botina, retirava aquele estorvo, jogava dentro do saco, ou seguia com ele nas mãos, percorrendo desconsolado o caminho de volta.

Como morávamos no final da rua, muitos vi nesta marcha depressiva, a própria imagem do vencido, descalço, sujo, vergado pela bebida, o saco atirado às costas.

Outros iam mais longe nessa arte de se perder. Não queriam voltar ao sítio mesmo com o fim do dinheiro. Ainda havia o crédito. Eles renunciavam à altivez inicial e mendigavam pinga a desconhecidos, e sempre recebiam, pois não se deixa um homem padecer dessa sede. Enquanto houvesse um boteco aberto, eles não sentiriam o apelo da estrada, e quando todos fechavam, eles já não tinham condições de sentir nada. Deitavam-se no chão, usando o saco como travesseiro, e passavam a noite em terrenos baldios, na rodoviária, na praça, na calçada, em qualquer lugar.

No outro dia de manhã, quando saíamos para a missa, usando nossas melhores roupas, cabelos lavados e bem penteados, um desejo de pureza, cruzávamos com uma ou outra dessas figuras rotas, imundas, destruídas, vivendo agora as agruras da ressaca, mil agulhas nas têmporas, o peso descomunal das pernas, os pés paquidérmicos se arrastando na poeira, às vezes apenas uma das botinas na mão, a outra restara perdida sabe lá Deus onde, a roupa rasgada, rapidamente envelhecida. Soldado de volta da guerra, derrotado pelo meio hostil, com armadilhas tantas, impróprio a um matuto mais afeito ao uivo dos ventos no mato, às necessidades dos animais, ao cabo rústico das ferramentas.

Como seria o retorno desses heróis de sábado? As mulheres ficariam irritadas? Não chegariam a tempo, para o almoço dominical, os mantimentos. Como fazer a macarronada, sem o macarrão e a massa de tomate? Ao abrir as compras, muitas coisas estariam estragadas. Aquele pedaço de carne de boi comprada para as crianças estaria sujo e cheirando mal, isso se não tivesse sido dado a uma das donas da vida ou a algum vendeiro em troca de mais uma dose. Haveria brigas, a mulher teria feito mandioca cozida com carne de lata ou qualquer outra refeição rotineira, desistindo do requinte de domingo.

Contemplando a macarronada ou a maionese ou o frango assado em pedaço, eu imaginava o destino desses homens, das famílias da roça, e imaginava que era preciso sim mudar o mundo.

Mas o mundo, não sei se feliz ou infelizmente, não precisa de ninguém para mudar, ele faz isso por conta própria, e um dia parei de ver esses roceiros, agora morando nos conjuntos de casas populares nas periferias, depois deixei de viver na cidade, aprendi outros caminhos, os que levam embora, e hoje até me assusto quando visito aquela latitude onde os pés daqueles trabalhadores não deixaram sinais.

Penso nisso olhando as feridas em meus pés – pés que lembram aves abatidas a tiro.

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