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"Um cronista nunca deixa de inventar narrativas mesmo que a maioria delas jamais seja publicada, porque antes de mais nada ele produz para consumo próprio. O cronista é um homem que fala sozinho, escrevendo interiormente como se tivesse na redação do jornal, onde aliás nunca trabalhou nem desejou trabalhar, porque só consegue trabalhar na solidão."

Já tinha sido internado outras vezes, mas nunca numa UTI, o que era uma experiência inédita para quem não se cansava de buscar novidades. Ele, nos poucos momentos de consciência, observava tudo, os enfermeiros, os demais pacientes, a sala que mais parecia uma enfermaria de guerra, local que desconhecia, uma vez que não lhe fora permitido, pelo destino cordato do país, participar de nenhuma guerra.

Então aproveitava a doença súbita para adquirir um pouco de informação sobre zonas desconhecidas da realidade. Via os demais combatentes chegando e saindo, alguns vencidos, mas ele resistia, com várias horas de inconsciência entremeadas por algumas de febre e indesejada embriaguez.

Constatou. As enfermeiras eram mais brutas do que os enfermeiros. E tirou logo uma conclusão. As mulheres viam nos internados as obrigações familiares. Cuidar do marido doente, da sogra, daquele tio enfartado. O hospital era a extensão de um futuro familiar do qual elas queriam fugir. Por isso a impaciência. Danem-se esses idiotas todos que destroem minha vida, elas pensam, tratando-os com o desprezo e a agressividade que merecem.

Já os enfermeiros, em menor número, é bem verdade, dedicavam-se aos doentes terminais com certo humanismo. Ainda ontem os pacientes estavam vendo o seu programa predileto na tevê, esse deve ter feito sexo com a mulher, aquela outra aguou as plantas na tarde de domingo, e agora estão todos aqui se despedindo da vida. Eu aplicaria uma injeção letal neles se me pedissem, diz para si mesmo o jovem enfermeiro. Viver é tão trágico. E ao mesmo tempo tão delicioso.

Ao final do expediente, este jovem não irá direto para casa. Passará num bar para uns tragos com o amigo e pedirá um petisco gorduroso, enquanto ainda posso, pensará, pois a qualquer momento serei impedido de tais desregramentos e terei de passar a cereais, leite desnato, arroz integral e folhas insípidas de alface. Então mais um chope e mais duas empadinhas de palmito, meu Deus, estou vivo e este é o maior milagre.

O cronista não só observava os atendentes da UTI como construía essas pequenas histórias. Um cronista nunca deixa de inventar narrativas mesmo que a maioria delas jamais seja publicada, porque antes de mais nada ele produz para consumo próprio. O cronista é um homem que fala sozinho, escrevendo interiormente como se tivesse na redação do jornal, onde aliás nunca trabalhou nem desejou trabalhar, porque só consegue trabalhar na solidão.

Encontrava-se agora na UTI, à beira da morte – e não sabia se isso era real ou inventado. Mas com certeza podia considerar uma experiência nova. Devia então aproveitar o máximo, tirando informações úteis para uma crônica, caso ele, por um milagre qualquer, sobrevivesse. Se fosse dessa para uma melhor num piscar de olhos, todas as suas observações estariam irremediavelmente perdidas.

Pensava no desperdício que seria a sua morte bem agora. Foi quando notou a presença de alguém ao lado de seu leito. Não era hora de visitas e o senhor vestia um terno escuro, mais para juiz do que para médico.

– Boa noite – ele disse.

O cronista apenas sorriu, achando estranho desejar boa noite ou bom dia ou boa tarde a alguém que havia dias, ou séculos, não estava mais sujeito ao registro temporal.

– Estou aqui com alguns formulários.

Não era possível. Mesmo neste limite entre vida e morte, os funcionários de seguradoras ou empresas similares apareciam para colher assinaturas. O mundo tinha realmente se desumanizado. Ele não acreditava. Fechou os olhos para ver se, ao abri-los, o intruso teria desaparecido. Mas isso não ocorreu. Continuava em pé, ao seu lado, com ar profissional.

– Não estou em condições de ler ou de escrever – o cronista disse.

– Preencho para o senhor. Basta me dar os dados. Nome completo.

Ele falou o nome, que soou estranho, como de alguém morto.

– Data e local de nascimento.

Ele se resignou e foi respondendo estas e outras perguntas mais cadastrais. Até chegar àquela que era a razão de tudo.

– Com qual idade o senhor gostaria de ser congelado na vida eterna?

– Como assim?

– Quando uma pessoa morre, ela ganha a vida eterna.

– Até aí tudo bem.

– Não importa se vá para o inferno ou para o paraíso, viverá para sempre. E como o tempo é suspenso, o morto pode escolher com qual idade quer desfrutar a imortalidade.

– Então não vamos continuar do ponto em que paramos?

– Não há qualquer relação de continuidade entre o aqui e o além. Vim para saber com qual idade o senhor quer viver lá.

O cronista nunca tinha pensado nisso, mas respondeu no ato.

– Com 14 anos.

– Ah, a entrada na juventude. É o momento predileto dos artistas da palavra. Os do cinema preferem algo entre 18 e 25 anos.

O cronista fechou os olhos, indiferente à visita, que talvez até já tivesse ido embora, e ficou se lembrando de seus 14 anos. Foi quando saiu de casa para estudar fora, depois de ter conhecido biblicamente uma vizinha casada. Estava sozinho no mundo, tinha freqüentado o corpo de uma mulher com no mínimo o dobro de sua idade. Para trás ficava a infância, cujo gosto ele ainda trazia na boca, e diante dele anunciava-se a vida, a vida vasta de um homem que, ingenuamente, se sonhava destinado a algo.

Ps. Sinto informar que este texto não é autobiográfico.

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