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Sempre tive medo do infinito. Algumas vezes cheguei a me aproximar de um estado de loucura ao pensar no imenso que existia ao redor do planeta que habitamos. A loucura é uma forma de desconhecer fronteiras. A sanidade não passando assim da arte de criar cercas ao redor do que somos, inventando o nosso mundo real. Essas ideias me surgiram esta semana depois de ter tido uma experiência que antes poderia ser desastrosa. Participando de um projeto de física que comemora os 400 anos do telescópio, fui convidado para ver a lua. Nunca tinha olhado em um telescópio, fugindo deste confronto mais direto com o universo e sua vastidão. Neste evento, não tive como me esquivar. E espiei a lua por três telescópios diferentes. A primeira constatação não é lá muito científica. A lua parecia com bactéria vista em microscópio. O aparelho nos tira a noção de tamanho. O grande virando pequeno. O muito distante se aproxima microscopicamente. Depois, pensei que a lua poderia ser uma roda de papel colada em cartão preto. Aliás, tínhamos que desenhar a lua que víamos no telescópio. Havia giz branco e papel preto. Todos se divertiam vendo a mesma lua que Galileu nos ensinou a ver. Ali estava ela, em sua viagem silenciosa. De­­serta. De uma claridade mórbida. Cheia de crateras que lembravam marcas de gota de chuva. A outra constatação é que ela se move muito rapidamente. O posicionamento do aparelho tinha que ser corrigido de tempos em tempos. Tímida, ela queria fugir do grupo de jovens e de uns poucos adultos que se deslumbravam com sua nudez.

Fiquei o tempo todo em silêncio. Vagando entre as pessoas. Meio deprimido mas não desesperado. E isso era uma grande vantagem. Geralmente me desespero. E me desespero por nada.

A lua e eu já tivemos alguns confrontos. Em 1990, morávamos em Florianópolis e tínhamos saído para comprar algo no mercadinho de praia. Escu­recera e voltávamos por ruas ar­­borizadas quando saímos em uma estrada que acabava no mar e uma lua cheia, fantasmagórica, surgiu no horizonte, com sua luz que enlouquece. O susto foi tão grande que meu batimento cardíaco aumentou. Eu quis sair correndo, mas apenas apressei o passo, sem olhar para aquela enormidade posta logo acima da linha do mar. Era como se ela estivesse ali, ao nosso lado, invadindo a praia. Em casa, tentei me acalmar com um chá doce, fechei as cortinas e fiquei escondido da grande in­­discreta.

Passei a desconfiar da lua, evitando olhar o céu.

Alguns anos depois, já morando de novo em Curitiba, soubemos de um eclipse lunar. Era o momento de enfrentar a lua, num instante em que estaria saindo de cena, encoberta pela terra que se posicionava entre ela e o sol. Criei coragem e fui para o pátio, onde havia muita gente. Quando fixei o olhar nas alturas, a sombra já avançava, apagando mais da metade do astro. Senti o movimento da terra na sombra que se movia e tive um estremecimento. Era como se o chão se movesse. Veio-me uma tontura e tive que correr para o apartamento e me acalmar com alguma coisa. Não me lembro com o quê. Talvez com cervejas.

E assim decretei minha aversão à astronomia. Estava convicto disso até esta semana.

Ao ver a lua pelo telescópio, eu não senti nada mais grave. O que tinha mudado nestes anos? Eu atingira alguma maturidade? Fiquei pensando nisso, tentando achar respostas. Foi quando en­­tendi a loucura como uma queda no deslimite. Constatar a nossa insignificância no universo era fazer com que tudo o que nós somos perdesse o sentido. Se o planeta é esta poeirinha, quem somos nós? Os nossos dramas, as coisas que amamos, as nossas profissões, as obrigações cotidianas, tudo isso não passaria de bobagens. Há uma força centrífuga na observação do universo que nos tira de nós mesmos. Era esta atração que a lua exercia sobre mim, mas agora eu sabia neutralizá-la.

No tubo do telescópio, a lua era uma ficção. Uma brincadeira de criança. Uma bactéria, como já disse. Muitas vezes, meio doidamente, pensei no universo co­­mo uma imensa infecção que se expande infinitamente.

Mas o que de fato me protege da lua e do infinito é uma capacidade de me fixar nas pequenas coisas. Olho diariamente a grama do quintal, crescendo com obstinação. E os matos que frestam o seu tapete verde. O nosso pé de romã deu uma carga inédita de flores, a grande maioria caiu no chão, pois a árvore frágil não suportou a florada intensa. Sinal de que devo adubar o solo. Vejo que o telhado da casa, essa película que nos protege do infinito, está todo embolorado e preciso mandar alguém lavar. Já fiz isso outras vezes. Há um mundo que exige reparos constantes, que depende de nossa atenção, de nosso olhar. E eu me dedico a ele. Se o universo é um vazamento, uma fuga para o nada, o quintal é uma forma de estancar tudo. Vamos cultivando coisas, objetos, hábitos e leituras. Orga­­nizamos os livros lidos na estante, criando uma ordem qualquer para eles. Deitamos meio com fome, esperando a manhã, quando faremos uma torrada com o pão amanhecido e comeremos aquele alimento com reverência religiosa. Nestas coisas está o sentido. Nelas, a sanidade. Fincamos raízes nu­­ma rotina mínima para não nos entregarmos ao desespero.

A lua já não me assusta. Em algumas noites, abro a janela que dá para o jardim dos fundos, e durmo ao lado dela.

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