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Um mendigo não identificado, aparentando entre 30 e 60 anos, com sinais de cirrose, foi encontrado morto no centro da cidade. Não havia com ele nenhum documento, apenas uma folha de papel A4, impressa numa das faces com parte de um relatório econômico, mas com o verso coberto por uma letrinha miúda, provavelmente de caneta Bic ponta fina.

Ainda não se contabilizou o número de poetas que vagam pelo país, sem teto, sem editora, sem leis de incentivo e, o que é pior, sem ao menos um caderno para recolher seus escritos. O corpo do indigente se encontra no IML para identificação. Abaixo, o texto, único legado desse desconhecido – talvez alguém possa identificá-lo pelo estilo:

abro este baú carcomido pelos vermes, pelo álcool e pelo amor e retiro de sua pança inchada todos os meus pertences, que agora reparto como quem dissipa uma herança difícil, longamente interdita

que o meu odor mais azedo, meu suor mais estonteante, meu mau-hálito, meus gazes intestinais, que toda esta minha poluição animal fique ao vento, com a condição de que ele saiba espalhar isso que eu nunca quis esconder

que minhas unhas moles e sujas, compridas não por vaidade, mas justamente por falta dela, sejam entregues a algum banco de órgãos, e que possam salvar vidas, dando, a quem delas precisar, condições para que coce suas perebas, lanhe o rosto no desespero, limpe o ouvido e seja uma arma de defesa, talvez de ataque, pois nunca se sabe

ficarão aos restaurantes por aquilo, principalmente àqueles que me davam seus restos azedos, seus ossos roídos, seus caldos pestilentos, esta minha rala cabeleira, e que cada um possa ao menos servir um fio ensebado num prato de salada, condimentando-o com especiaria tão rara

que meus olhos cansados, que já não enxergam bem, sejam dados de presente a algum menino e que ele os use como bolinhas de gude, e quando as duas esferas estiveram rolando na terra que ainda possam ver a alegria na face humana, dois meninos disputando um jogo inocente, que meus olhos continuem desse jeito, vendo tudo pela primeira vez e sempre atirados para frente

que meu desejo, entorpecido pelo álcool, mas que de vez em quando se manifesta com raiva, transbordando seus líquidos como o vulcão a sua lava, que meu desejo se prolongue depois de minha morte, nem que seja na forma de baba no canto da boca, mas para isso deixem-no à mais depravada das moças, destas que se dizem fáceis, mas que para mim sempre foram caras

que minhas cuecas sujas, endurecidas de todos os resíduos, tanto os sólidos quanto os líquidos, que estas minhas cuecas maculadas fiquem para algum partido político, que faça dela uma bandeira de salvação da pátria

e estes meus últimos três dentes, os mais amados, porque me serviam para rasgar um pedaço duro de carne, para abrir a garrafa de cachaça, para morder meu próprio braço nos momentos de sexo solitário, que estes meus dentes adornem um colar de bijuteria vendido pelos velhos hippies, com quem aliás passei horas felizes, que continuem rindo de tudo, rindo principalmente de mim, agora pendurados no peito de alguma meretriz, de algum mau menino, de algum drogadito em fim de carreira, sempre com seu cachimbinho aceso, que estes meus dentes que venceram todas as cáries, e que foram a minha mais cara metade, me levem adiante, na breve eternidade de sarcasmos

e agora chega a vez de minhas lembranças, meio apagadas pelo tempo, e que ainda me servem, revelando quem fui, mas a quem interessa quem fui?, que minhas lembranças se evanesçam num instante, nunca houve o antes, eram só miragens, tristes fantasmas que habitavam minhas tardes, e me diziam coisas falsas, como todas as beldades, que minhas lembranças desapareçam antes que eu apodreça, que não atormentem o mundo sem minha presença, nem fiquem vagando pelas ruas em horas desertas, que se recolham à minha inexistência

e estes pés, rachados e imensos, que mal cabem nos sapatos mais anchos, que estes pés de gigante num corpo bem menos, que eles sejam cortados e enterrados em algum parque, para que possam apodrecer como raízes, é o que sempre quiseram, voltar à terra, não para lançar tronco e galhos e folhas e talvez até flores, mas para morrer em paz num sonho insondável, que meus pés possam enfim não mais me acompanhar

e estas palavras que carrego como uma praga, palavras que roubei de outros bocas, mas principalmente de muitas e muitas páginas, lidas com uma atenção distraída, que estas palavras, que nunca foram minhas, que sempre usei indevidamente, o que fazer com elas? vamos, me digam, o que fazer com algo que não existe aqui dentro, apenas fora de mim, que não faz parte de meu corpo, não foi gravado em minha pele, como tatuagem, o que fazer com palavras? a quem deixá-las? doar para uma biblioteca?, com um texto testamentário: deixo à biblioteca pública todas as minhas palavras puras, mas o que fazer com as palavras sujas, com aquilo que não se fala numa sala, com o que não se pronuncia nem na frente da mulher amada, o que fazer com as sílabas carcomidas, que não significam nada, com os termos estrangeiros que pronuncio erroneamente, com o nome de algumas pessoas que ninguém já conhece, o que fazer com palavras de benzer, com termos de magoar, com frases de maldizer, o que fazer com meu nome, por exemplo?

e, neste momento, a folha que agora me ampara se ergueu da calçada para dizer venham a mim todas as tuas palavras.

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