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Uma semelhança constrangedora me liga ao compositor e cantor Chico Buarque de Holanda. Não sei se vocês notaram, mas o Chico está com a cara caída, cada vez mais parecido com um buldogue. É lei da física – explica minha irmã, bioquímica e fã do Chico, para ela um dos homens mais bonitos do Brasil –, com o passar dos anos tudo tende para a terra.

Desde que cheguei à constatação de que a face do Chico está virando uma courama despregada, passei a observar as pessoas e a exercer esse olhar impiedoso contra mim mesmo. Foi assim que descobri a semelhança com Chico Buarque na hora de fazer a barba. Minha cara também está caindo. Meu rosto ficou mais descarnado, fruto das várias tentativas de emagrecer, embora a barriga permaneça impávido colosso. E o que mais me irrita é que meu nariz está sempre maior.

A cada nova foto ou aparição do Chico na tevê vejo que o nariz dele aumentou. Corro ao espelho e constato que o meu também. E olhe que tento mentir o menos possível – não é, portanto, uma crise de Pinóquio. O fato é que a cara cai e o nariz ganha proporções avantajadas.

Começou em mim também a revolução dos pêlos, própria de quem cruza a fronteira perigosa dos 40. Eu me lembro que ainda ontem, quando tinha líricos dez anos, entusiasmei-me com os primeiros pêlos púbicos, macios e tímidos, que me davam uma assustadora autoridade sexual. O bigode e a barba não vieram na juventude, e até hoje são ralos. Se deixo crescer um pouco, fico parecendo traficante boliviano, sem nenhum preconceito. E já cheguei a ser abordado por policiais, tanto na Bolívia quanto na Espanha, por portar minha barba. Em Barcelona, fui tomado por terrorista árabe. Narigão, pele escura e barba arrepiada. Estávamos a apenas um mês das explosões na estação Atocha e eu correspondia a uma imagem de homem perigoso. Em Santa Cruz de la Sierra, a polícia revistou somente a minha mala, deixando meus amigos em paz.

O primeiro sintoma desta revolução de pêlos foi o surgimento de imensos fios na sobrancelha. Em grande número, eles crescem e ficam crespos e duros, me dando uma feição rústica. Bem, estou me valendo da pinça de minha mulher para me livrar desses fios indesejados.

Nas narinas, tufos de pêlos obscenos se proliferam descontroladamente, obrigando-se a usar uma tesourinha para a poda dos que saem para fora.

O cabelo agora está muito áspero, com redemoinhos em várias regiões. Excesso de testerona, o hormônio masculino – pontifica meu cabeleireiro.Tenho cortado o cabelo a cada 20 dias, para manter a quiçaça em ordem.

Nas costas, longos e isolados fios negros crescem assustadoramente em poucos dias, justo em quem nunca teve corpo peludo.

O que está acontecendo comigo?

Como ando meio pessimista, leio a obra de Schopenhauer. É outro sintoma da crise? Com quem poderei falar sobre este assunto? Melhor me dedicar ao velho niilista alemão. Estou agora me deliciando com Sobre a filosofia universitária (Martins Fontes, 2001), livro que não recomendo aos clérigos do ensino de terceiro grau. Falando das mentes rotineiras que dominam as cátedras, Schopenhauer alerta para a barbárie destes homens pretensamente refinados – na época eram apenas os homens que lecionavam –, estampada num símbolo selvagem: a barba.

"Ainda como sintoma externo deste excesso de rudeza, olhai sua constante companheira – a barba crescida, este signo do sexo no meio do rosto, indicativo de que se prefere, à humanidade, a masculinidade que se tem em comum com os animais, pois se deseja antes de tudo ser macho, e só depois ser humano. Em todas as épocas e países altamente civilizados, o barbear-se nasceu exatamente do sentimento contrário, por meio do qual se deseja ser antes de tudo um ser humano, deixando de lado a diferença sexual animalesca. A barba crescida, ao contrário, caminhou lado a lado com a barbárie, cujo nome ela recorda" (p. 61).

Para quem acha que isso é uma crítica ao PT e seus ídolos barbudos, gostaria de alertar que Schopenhauer morreu em 1860 e não tinha dons premonitórios.

Eu descobri neste filósofo que meu organismo, alimentado não sei por quais substâncias, está empenhado em me deixar "o signo do sexo no meio do rosto", é como uma máscara, uma outra identidade. Minha barba cresce agora mais rapidamente, azulando a face em menos de 12 horas – mais um dos sintomas da tal revolução. É o animal querendo me roubar o pouco de humanidade que tão custosamente conquistei. É o sátiro, o homem das orgias que se revela nesta emissão frenética de pêlos, depois de 40 anos de vida praticamente imberbe.

Desde jovenzito, sempre quis viver na civilização, e achava ser este o meu destino. E, em mim, o animal pré-histórico, o troglodita, o abominável homem das neves, o lobo – enfim, o outro tramava sua vingança.

Não é apenas a política e a universidade que estão sob o domínio dos homens rudes que exibem barbas, muitas vezes imaginárias – meu próprio corpo sofre esta invasão. Tenho vencido a luta, usando todos os instrumentos disponíveis, mas não sei até quando. Uma hora me canso de minha cara caída, de meu imenso narigão, e deixo a barba e os demais pêlos tomarem conta.

Por isso, se me virem barbudo, cuidado, muito cuidado. Posso ter me transformado num fauno, num terrorista ou num sábio.

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