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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Muitas pessoas me perguntam por que escolhi Ponta Grossa para viver. Depen­den­do de meu humor, dou as respostas mais diferentes. Posso dizer, por exemplo, que tudo não passou de um acidente. Aprovado num concurso, fui ficando. Sou, portanto, pontagrossense por preguiça de me mudar. Já dei outras respostas, mais líricas. Permaneci na cidade porque acho esta uma região belíssima. Porque me acostumei ao vento, que aqui é feroz a ponto de esculpir arenitos. Porque me agrada envelhecer numa cidade com um pôr-do-sol tão pungente.

Ou parto para o sentimentalismo. Porque meus filhos nasceram aqui, fazendo desta a minha terra natal.

Também tenho respostas evasivas. Não moro em Ponta Gros­­sa, e sim em meu computador. Para um escritor da minha geração só foi possível habitar o interior depois do advento da internet.

Seja qual for a resposta arranjada para a pergunta que se torna cada vez mais freqüente, nenhuma delas expressa a verdade. Não sei por qual razão moro em Ponta Grossa. Talvez por um sentimento de gratidão. Eu estava desempregado, passei num concurso público e, mesmo não conhecendo ninguém na cidade, e apesar de minha natureza crítica, aceitaram-me. Como órfão profissional, sou sempre grato a quem me aceita. Não consigo não reconhecer gestos de generosidade.

Em momentos de ira, já ameacei ir embora. Mas as relações com uma cidade são como as de casais. Briga-se violentamente uma hora, há agressões mútuas, escancaram-se todos os defeitos do outro, mas a pessoa sai um pouco para refrescar as idéias e, horas depois, as coisas retomam a normalidade, com promessas de um convívio mais ameno. Não raro tudo termina numa intensa noite de amor.

No ano passado, acalentei o sonho de me separar. Quanto mais conhecemos uma cidade, mais nos apossamos de seus defeitos. Já não suportava as idios­­sincrasias de Ponta Grossa.

Mas retornar para onde? A certa altura da vida, fica difícil ter definido um local de origem. Não sabemos mais a qual território pertencemos. Deveria tentar a minha perdida Bela Vista do Paraíso? Foi muito rápida a expulsão daquele paraíso. Saí de lá aos 4 anos. Ou seria melhor Peabiru, minha segunda cidade na­­tal, uma vez que meu pai está enterrado lá? Mas foi em Campo Mourão que conquistei a independência, morando num colégio interno. Então, eis minha ver­­dadeira cidade, que me ensinou a me virar sozinho, longe dos afetos familiares. Mas poderia ser também Curitiba, para onde fui muito jovem, tendo morado nela outras três vezes. Ou ainda Florianópolis, onde fiz pós-graduação e estreei com um livro, ganhando o primeiro dinheiro com literatura. Todas são cidades natais para mim. Voltar a apenas uma delas não seria de fato voltar. Haveria uma incompletude neste gesto.

Mesmo assim, fiz uma viagem precursora a Peabiru, para me acostumar com a idéia, revisitando os lugares marcantes do passado. Caminhei pela cidade que era minha e não era. Conversei com uns poucos amigos. Quando chegamos em Ponta Grossa na noite de domingo, cansados da viagem, decidi pegar uma pizza num restaurante. E só enquanto esperava a pizza encontrei mais amigos do que no feriado todo em Peabiru. Foi quando descobri que eu era definitivamente daqui. Gostando ou não da cidade, a cidade gostando ou não de mim.

– Mas você gosta da cidade? – perguntam-me.

E aí me enrosco todo. Dou respostas muito variáveis.

– Eu me acostumei a ela. É como dirigir um carro que a direção puxa para um lado. Você pega a manha e se defende de um possível acidente. Outra resposta:

– Aprecio os hábitos interioranos, aqui todos se conhecem, há ainda uma possibilidade de sentir-se numa cidadezinha pequena.

Sou também provocador:

– Gosto da cidade apesar da carência de bons restaurantes e de espaços públicos de lazer.

Enfim, gosto. Condicionado ou não. E daí vem a outra pergunta:

– Não sente falta de uma vida cultural mais intensa?

– Para o escritor, a solidão faz bem – respondo, humilde.

Ou sou incisivo:

– A cultura está em todo lugar, não se restringe aos grandes eventos.

Apesar desta última resposta, fujo sempre para São Paulo e Rio, buscando exposições, livrarias, restaurantes e escritores, no desejo de me ilustrar. Enfim, é uma relação contraditória, de identificação e repulsa. Já recebi várias homenagens aqui e também fui violentamente agredido na mídia local. Já exagerei nas críticas à urbe e também fiz elogios hiperbólicos às suas qualidades. Mas tudo é briga em família. Cada um no seu direito de esculhambar o outro.

Ainda não sou pontagrossense, segundo um amigo bem posto em uma família tradicional. Para conseguir este título devo antes assistir a uma partida do glorioso Operário, coisa que pretendo fazer em breve.

Comemorando hoje 186 anos, e sendo cheia de histórias pouco conhecidas, Ponta Grossa é terreno fértil para um escritor. In­­felizmente, só pude participar dos últimos 16 anos da vida de uma das cidades mais particulares do Brasil. Mas estou procurando terreno para construir outra casa aqui. E isso vale por uma sincera declaração de amor.

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