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Pois é, até mesmo o pequeno e rústico urso tem seus momentos gregários. De galináceo, como gosto de dizer. Depois de duas décadas, voltei a participar de uma das mais emblemáticas ins­­tituições de fim de ano: o amigo secreto. Claro, eu tinha que ironizar. Então dizia tratar-se da festinha de inimigo secreto, explicando: como isso acontecia no ambiente de trabalho, pouca era a distância entre amizade e inimizade.

Posso confessar aqui uma fraqueza. Entrei na brincadeira porque não sei dizer não. Fico constrangido em revelar minha ranhetice que cresce no fim de ano. Não vejo a hora de acabar o mês de dezembro. São tantas obrigações tolas, como desejar feliz Natal e próspero ano novo. Tenho vontade de gritar com todo mundo quando me vejo pronunciando esses lugares comuns. Mas, por delicadeza ("Par délicatesse / J’ai perdu ma vie", ah, Rimbaud), acabo fazendo o jogo. E lá estou eu falando o óbvio.

Claro, não chego ao fundo do poço de mandar cartões de Natal, ou mensagens otimistas. Nem faço discurso nos muitos jantares e almoços desta época. E eis aí outra coisa detestável. Ter que sair com a turma para comer e brindar. A obrigação de mostrar-se alegre. De comemorar. Comer muito. Beber ainda mais. Comprar produtos importados que não fazem parte de nossos hábitos. O urso quer hibernar em de­­zembro, e só acordar depois de outros convencionalismos como ir para a praia, fazer a viagem de férias, enfim, essas coisas todas.

Sou como aquele velhinho dos desenhos animados e dos filmes ordinários, o velhinho carrancudo que odeia Natal. Mas faço do meu mau-humor uma forma de diversão, exagerando o lado irritadiço.

Pois foi este mal-humorado de fachada que colocou seu nome na lista de amigo secreto. O teto financeiro para o presente era modesto: 15 reais. O desafio seria comprar alguma lembrança interessante e original com tão pouco dinheiro. Para não haver erros, mas também para brincar, havia uma lista de expectativas de presentes. Um amigo pediu um carro. Com 15 reais, apesar da redução do IPI, ainda não dá para comprar um carro. Daqui a algum tempo, talvez. Outros, indicaram coisas sérias. Outros não revelaram nada, desafiando: descubram o que me agrada.

Isso me estressa. É uma responsa muito grande tentar contentar os outros. Para facilitar a vida de meu inimigo secreto, eu disse que gostaria de receber alguns lápis. Muitas pessoas sabem que coleciono lápis. E este é um presente fácil de comprar. Qualquer papelaria de bairro tem. E não é nada caro. Mantenho de prontidão muitos lápis na minha mesa, embora hoje escreva mais no computador. São objetos de recordação, por conta de uma frustração da infância, daquelas que marcam para sempre. Os amigos levavam lápis reluzentes para as aulas, eu os cobiçava em silêncio, usando os mais baratos, que eram apontados até virarem tocos que mal cabiam em minha mão miúda – maldita infância pobre! Mas a mania também vem de um tempo em que, para o escritor, bastava ter lápis e papel. Hoje, há todo um aparato eletrônico a ser dominado. Então, a coleção de lápis me pacifica comigo mesmo. E isso, para um atormentado, não é pouco.

Depois de escrever o que desejávamos, retiramos os nomes. Por azar, a pessoa que me coube não revelou o que queria. Pedi para minha mulher comprar algo adequado. Ela é uma pessoa criativa, poderia me ajudar também nesta tarefa. Mas o tempo foi curto para ela, e me vi na tarde da revelação do amigo sem um presente. Trabalhei o dia todo e, minutos antes da festa, corri a uma livraria. Não, livro não é presente que se dê sem que se peça. Quem dá um livro dá uma obrigação de leitura. Longe de mim criar mais obrigações para as pessoas.

O que comprar, então? Tinha que decidir isso em pouquíssimos minutos. Era como uma dessas provas de programas de televisão. Em tantos segundos a pessoa deve fazer várias coisas. Mas eu fiquei paralisado até esgotar meu tempo. Então comprei algo e mandei embrulhar para presente, sentindo-me ridículo ao sair da livraria com o pacote colorido.

Todos estavam já em torno de uma mesa de lanches. Eu sem fome. Sem sede. Então começou a revelação. Cada um contando uma historinha sobre o amigo. Aquela encenação toda. Suspense falso. Palavras idem. Risadas forçadas. Aplausos tensos. Mas, por uns minutos, fomos de fato pessoas próximas. Recebi meu presente, vendo-me obrigado a sugerir a identidade de meu amigo.

Desde o início, estava imaginando como falar dele. Uma verdadeira tensão para mim. Na hora, escolho um traço qualquer da sua personalidade, e me adianto para revelar seu nome. Entrego o pacote e me sento num canto. Estou a salvo. Saí de cena. Agora, é só olhar o comportamento dos outros. Faço brincadeiras, tentando me acalmar. Mas estou louco para ir embora.

O telefone celular toca – nada mais oportuno. Saio para atender. É uma ligação longa que alongo ainda mais. Quando ela termina, tudo está no fim. Quase não comi nada. Bebi apenas coca-cola. O urso pode se recolher à sua toca.

Sem saber o que dar ao amigo, comprei uma agenda. Sim, uma agenda é o presente mais comum de fim de ano. Equivale às palavras convencionais do período. É como desejar um próspero ano novo. Um calendário anual de realizações. Ai de mim, mesmo fazendo de tudo para fugir das armadilhas do período, acabei desmascarado.

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