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Estou sempre chegando em Curitiba, o que me desperta uma sensação de reprise.

A cidade e eu mantemos uma relação amorosa nunca efetivada. Em 1983, decidi me estabelecer na capital, deixando para trás Peabiru. Sobre Curitiba, sabia apenas que fazia frio. Vim com uma mala pequena, trazendo uma velha japona de couro, emprestada por um amigo, e uma blusa de lã.

Acabei numa pensão no centro, descobrindo, deslumbrado, o cardápio dos estudantes pobres. A pensão era especialista em variações de um prato para mim novo – a vina. Era vina com batata, vina com repolho refogado, vina com molho de tomate, vina frita, etc. Eu me aproximava do refeitório, na hora do almoço, alegre com a possibilidade de conhecer uma nova versão da vina, para espanto de meus colegas de quarto, todos já enjoados da monotonia desse cardápio. Como eu só conhecia a salsicha de lata, branquela, usada na maionese dominical, a vina representava a conquista da civilização.

In vina veritas.

Na segunda semana, já procurava restaurantes populares nas imediações da Praça Osório.

Então se deu meu primeiro contato com o inverno curitibano. Eu já estava morando numa república na Mariano Torres, e continuava protegido apenas pela ridícula japona de couro (cor de vinho), que apelidei, carinhosamente, de jafona. Por ser grande e ter bolsos internos, eu a emprestava a um companheiro de república, para ele fazer a feira. Mesmo no verão, a jafona rodava os mercados e eu recebia, como paga, pacotes de presunto e queijo, escovas e cremes dentais, chocolates, bolachas, etc.

Se me permitia comer um pouco melhor, pouco pôde me ajudar quando veio a onda de frio. Eu andava pelo calçadão da rua XV com os pés úmidos, a barra da calça eternamente molhada e o tronco gelado, pois a blusinha de lã e a jafona eram insuficientes. Telefonei para minha mãe, relatando meu estado, fiz voz de doente, tossi mais do que o necessário, num verdadeiro dramalhão, e dias depois chegou um vale postal que permitiu que eu fizesse a primeira compra em Curitiba. Rodei as vitrines. E, numa loja na esquina do Museu Paranaense, encontrei o que queria – um casaco de náilon, imenso e grosso, que rangia quando o corpo se movimentava. Depois que adquiri (ah, o valor transcendente deste verbo!) o casaco de astronauta, percebi que ele era tão cafona quanto a japona emprestada. Mas me aquecia e, abominável homem das neves, pude continuar vivo na cidade sem calor.

Meses depois retornei para casa, e o casaco ficou inutilizado no guarda-roupa.

Cheguei de novo a Curitiba em 1987, agora vinha para ficar. Novamente numa pensão, mas já sabia como enfrentar as armadilhas climáticas da cidade, e, logo casado, pagando religiosamente a prestação de um apartamento de conjunto, pude ter uma vida minimamente decente.

Cansado de esperar pela primavera, parti em busca do verão catarinense. Em 1990, mudei-me para Florianópolis, definitivamente brigado com Curitiba. As praias, as mulheres, o sol, as caminhadas em ruas de areia, tudo me livrava da longa estadia no freezer que tinham sido esses anos curitibanos, quando eu procurava na cidade apenas os amigos do interior.

Pouco depois, em 1992, estava chegando de volta a Curitiba, totalmente enjoado das vantagens litorâneas, sim, com saudade do frio, da vina, da frieza dos vizinhos. Eu tinha me curitibanizado?

Eu adotara a cidade, mas a cidade não me adotara. Sem oportunidades de trabalho, acabei, no ano seguinte, em Ponta Grossa, fazendo viagens mensais à capital.

Todo ponta-grossense é um tanto curitibano. Mas eu ainda queria ser um curitibano pleno e, em 1999, novamente estava chegando, com mudança e tudo, em Curitiba, de onde voltei poucos anos depois.

Agora chego sempre como visitante, com visto provisório.

Na semana passada, tomei um ônibus para dar um palestra no Memorial de Curitiba. Saí com sol, dormi e, quando acordei, já na entrada da cidade, chovia. Tive a sensação de estar entrando na cidade pela primeira vez. Era o menino de 17 anos e milhões de sonhos que aportava ali. Naquela viagem inaugural, também chovia. Eu redescobria, duas décadas depois, a força depressiva da paisagem cinza. Quem ia no ônibus era um outro Miguel, que, maravilhado, olhava os prédios, as casas com jardins e a chuva fina que tingia tudo de melancolia.

Na entrada da rodoviária, uma mulher ao meu lado viu um ônibus de Maringá e rosnou.

– Eu odeio Curitiba. Um dia ainda volto ao norte... – Ela disse, sem se dirigir a ninguém, e depois completou: – Vou ficar em volta daquele ônibus para ver se encontro alguém conhecido.

Ao descer, uma pessoa me esperava. Iria me levar ao hotel, que ficava justamente na Praça Osório. Eu estava tão revoltado com aquela mulher que senti necessidade de dizer ao novo companheiro que achava inadmissível uma pessoa não gostar da Capital. O motorista me contou que também era do interior, há 20 anos vivia nesse frio filha-da-puta e não via a hora de se aposentar e pegar o caminho da roça.

No hotel, olhei longamente a cidade pela janela. Eu pertencia ou não pertencia a ela? Resolvi caminhar um pouco e acabei na mesma loja onde comprara o primeiro casaco – ninguém esquece o primeiro casaco comprado em Curitiba.

Eu a encontrei igualzinha. É um dos poucos lugares daquela época ainda inalterados. As vitrines são as mesmas. E também as roupas. Estavam lá casacos parecidos com o meu.

Tomei o rumo da Mariano Torres, com a mesma vontade daquela mulher do ônibus – queria encontrar alguém do norte. Nem andei duas quadras e vi, na massa de gente, um velho amigo. Parei, ele me reconheceu. E, juntos, procuramos uma galeria onde tivesse um café.

No caminho, perguntei-lhe onde morava agora.

– Um pouco aqui, um pouco em Maringá – ele disse.

Eu quis saber por que esse duplo domicílio.

– Lá circula mais energia – ele respondeu, meio misteriosamente.

Mas também há outra energia, esta que faz com que a gente esteja sempre voltando para Curitiba, mesmo quando Curitiba não se volta para a gente.

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