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Se você quer ir a Buenos Aires, tente primeiro uma viagem a La Paz, onde índios vivem – e fazem suas necessidades – na rua, cantam e tocam seus instrumentos em troca de algumas moedas e desempenham outras tarefas mal remuneradas. Há um lado La Paz em Buenos Aires que você flagra em bairros pobres como La Boca, mas também na Calle Florida, principalmente à noite, quando se vão os turistas e resta o imenso mar de detritos – caixas de papelão, garrafas de plástico, latas de alumínio, tudo reciclado por desempregados que passam a noite na rua, com suas mulheres e filhos.

Se você quer de fato chegar a Buenos Aires, é preciso passar antes por Havana, a cidade deteriorada, com seus carros remendados e sua cor de coisa estagnada. Em Buenos Aires, os carros velhos, a maioria amassada, sem faróis, táxis em petição de miséria, modelos de 30/40 anos atrás circulam em avenidas largas, poluindo, com seus motores desregulados, imponentes prédios que imitam com muita pretensão o mundo greco-latino.

Se você viu apenas as belezas recomendadas pelos guias turísticos, ainda não esteve na capital portenha. Buenos Aires é qualquer coisa entre La Paz e Paris, entre Havana e Madri.

Saindo da Plaza de Mayo, depois de uma visita à Casa Rosada, siga rumo ao Congresso Nacional, sempre pela Avenida de Mayo, observando os prédios com portas imensas – seria necessário empilhar três argentinos para se criar uma pessoa adequada a tais medidas. Analisando psicanaliticamente esses prédios, esse desejo de grandeza, entende-se a auto-estima do homem nacional, que não é um ser normal, vive naquela outra dimensão.

Para se chegar a essa Buenos Aires é preciso antes ter estado em Roma, e ter convivido com seres mitológicos. Por isso o turista brasileiro se sente pequeno nessa terra de titãs, andando sempre com os olhos para o alto, abismado com tal gigantismo arquitetônico.

E invariavelmente pisa na farta quantidade de excrementos de cães semeados pela calçada.

Se você quer mesmo ir a Buenos Aires, pegue a Avenida Vieira Souto, no Rio, e vá desviando dos restos dos cães, levados para passear por donos, mordomos e treinadores. Nos canteiros diante dos prédios cariocas, para afugentar cães que, ao que tudo indica, sabem ler, há a placa de que naquele lugar se colocou veneno, podendo prejudicar o bicho que se aliviar ali. Depois de percorrer as calçadas minadas de Ipanema-Leblon, você chega a Buenos Aires, com seus milhares de cães conduzidos por treinadores, ao preço de US$ 35 mensais por cabeça – cada profissional leva de 15 a 20 animais. Nas praças, centenas de cães, alguns grandes e violentos, expelem dejetos, correm soltos, brincam com os demais. De longe, vê-se a poeira levantada na confusão. Se você não gosta de cães, evite Buenos Aires, pegue a Avenida Paulista e se perca no mundo dos homens com pressa.

Mas se você quiser ainda conhecer Buenos Aires, comece aprendendo inglês, língua oficial de alguns jornais portenhos. Tome a Wall Street e não olhe para os lados. Em Buenos Aires, o dólar corre solto, três pesos por dólar, e você pode pagar o café na moeda americana, ou o táxi, ou o livro, recebendo como troco – invariavelmente errado – notas de pesos. É assim a cidade, um lugar onde você é logrado no mínimo em duas moedas.

Se você quer conhecer Buenos Aires, aprenda a ser maltratado, a não questionar nada, a gastar muito de seu portunhol para convencer o taxista a dar alguma informação sobre o melhor lugar para comprar livros em promoção. Um povo que tem aqueles prédios, que construiu tão formosa cidade, que deu ao mundo Gardel, Maradona, Borges, Perón, bem, esse povo olímpico não pode perder tempo com um reles turista brasileiro. E você então é desprezado, isso na melhor das hipóteses.

– São os efeitos sociais da falta da escravidão – diz uma amiga. Nós, no Brasil, fomos formatados por um regime escravista que, apesar de todos os horrores, criou a cordialidade interclasse que nos distingue. No fundo, tratamos sempre as pessoas como se fossem iaiá ou ioiô. Como na Argentina isso não ocorreu, todos se sentem pequenos reis, mesmo os que estão nas posições mais subalternas.

Se você quiser conhecer Buenos Aires, vá às piores churrascarias de sua cidade, aprenda a comer muita, mas muita carne. Depois de ter passado por esse treinamento, poderá provar a monotonia da culinária portenha. E seja bem vindo ao país da carne assada.

Agora, se você fizer questão de conhecer Buenos Aires, entre nas inumeráveis livrarias, várias em uma mesma rua, como em Corrientes, em Santa Fé, porque esse é um grande país letrado. Tão letrado que os jornais usam fontes muito pequenas, praticamente ilegíveis, para mostrar a você que o argentino sim lê, lê altivamente até aquelas miniaturas de textos, um verdadeiro desafio para quem vem de um país de analfabetos como o nosso e está acostumado a letras garrafais.

Mas o melhor roteiro para Buenos Aires é outro.

Se quiser mesmo conhecer Buenos Aires, suas grandezas e mesquinharias, pegue, neste verão, a Baía Norte, em Florianópolis, e siga até Canasvieiras. Lá você encontrará a metade da Argentina, veraneando como se estivessem em suas próprias cozinhas.

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