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Pelo retrovisor, viu a cidade na luz incerta do amanhecer, e isso ocorria bem na hora em que colocava a quinta marcha. Ficavam para trás tantas coisas, do serviço à família, dos colegas de rotina aos inimigos – era isso a civilização. Não viu passar o tempo até chegar à serra, o carro tomava agora estradas de terra, pedras soltas acertavam o assoalho, e ele acelerava alegremente, olhando a poeira por tudo. O sol alto, pouca gente nas propriedades e a velocidade aumentando na estradinha que se estreitava cada vez mais. Numa curva, quase capotou, e isso fez com que dirigisse um pouco mais devagar.

Junto com a poeira – não fechara os vidros, apesar o ar-condicionado – o cheiro de pão. Não de pão tirado do forno. Não havia no mundo ninguém que fizesse os pães caseiros que sua mãe, meio século atrás, fazia; o pão agora era uma broa de padaria, com o seu perfume industrial.

Parou o carro sob uma árvore, num carreador, e tirou a mochila com o kit de sobrevivência. Todos deviam sair com uma pequena provisão, como se esperassem a qualquer momento por um terremoto ou um tornado. Ou como se tivessem que cruzar o deserto. Ficou na dúvida se fechava ou não o carro. Estava no campo. Deixou-o aberto, mas levou a chave. Passou pela cerca de arame e entrou num pasto ralo, com umas poucas árvores. Nenhuma casa na redondeza. Era este isolamento que buscava. Caminhou uns 20 minutos, até alcançar uma região em que podia ver o cânion sem perder de vista o carro. Lá estava ele, um pontinho vermelho na paisagem – camuflada flor silvestre.

Escolheu um lugar plano, pisoteou bem o capim, verificando se não havia insetos ou mesmo uma cobra, e depois retirou um cobertor xadrez da mochila. Enrolou-se nele, como um desabrigado, deitando-se no chão.

Por uns minutos, ouviu o barulho do vento na vegetação, enquanto acompanhava as nuvens que se moviam, fugindo não se sabia para onde. Um pássaro cantou não muito longe dali. Ele se encolheu ainda mais, a sensação boa de estar sozinho, e dormiu rapidamente.

Uma lebre se aproximou, roeu ervas, cheirou a mochila, mas foi embora sem que o visitante acordasse. Um enxame de abelhas passou muito perto, procurando um lugar para se instalar. A manhã silvestre foi transcorrendo em seus eventos banais.

Ele acordou perto do meio dia. O sol de inverno não era suficiente para aquecê-lo. Tinha dormido de roupa, uma blusa velha que a mulher queria ter jogado fora, as botinas com os bicos esfolados. E foi ainda embrulhado que se arrastou até a mochila.

Tirou a broa já meio seca, era do dia anterior, e um prato raso, colocando-os no chão. A broa sobre o capim, sem nenhuma higiene. No prato, despejou azeite de oliva de uma lata pequena que furou com o canivete de seis lâminas que comprara sem saber para quê. Vai virar escoteiro? – brincou a mulher. Ele apenas riu. Sobre o azeite colocou sal e pimenta do reino. Cortou uma fatia grossa de broa com o canivete, molhando-a no azeite, e comeu avidamente. Uma sensação de bem-estar partiu de seu aparelho gustativo para o resto do corpo.

Meia broa e metade do litro de água mineral depois, levantou-se para se aproximar do precipício. Lá embaixo, na chaminé de uma casa, a fumaça era um fio esbranquiçado na paisagem verde. Alguém preparava o almoço. Ele não precisara perder tempo com isso.

Abriu a braguilha e segurou o seu instrumento animal, urinando como um garanhão no pasto. O cheiro ácido da urina tomou conta de tudo, e isso também era reconfortante. Estava no meio do mundo, na hora mais meridional.

Voltou lentamente para as suas coisas e se deitou. Não teve tempo de ouvir o vento ou qualquer outro som. O sono o pegou na hora. A barriga cheia, os olhos plenos de paisagem, o aconchego do capim e da manta, tudo funcionou como sonífero.

Demorou apenas meia hora para as formigas carregarem as migalhas da broa. Algumas morreram grudadas nos restos de azeite no prato. O canivete ficara enfiado na broa que, prudentemente, ele enrolara numa blusa sobressalente.

Acordou no meio da tarde com frio. O céu mudara. O sol estava indo embora e uma tempestade esbravejava de todos os lados. Mas ele não tinha pressa. Ainda deitado, esticou-se até a mochila e pegou o resto de pão, abrindo-o ao meio com o canivete. Despejou azeite diretamente ali e comeu, mastigando com calma. Pássaros voavam agitados. O vento se lanhava nas árvores. Ele já não enxergava o carro. Agora sim estava sozinho no mundo. Havia ainda um pedaço de pão e seus dentes queriam triturar aquele trigo, suas papilas sentiam o apelo do azeite.

Quando o pão acabou, a chuva já molhava o rosto dele. Calmamente, arrumou a mochila, guardando o cobertor, e começou a descer o morro na escuridão das quatro da tarde.

O galho espinhento de uma árvore acertou o seu lábio e ele sentiu o gosto de sangue. Os pés escorregavam no solo. A ventania o empurrava de volta, mas ele ia ganhando terreno. Levou quase uma hora para chegar ao carro, que estava completamente molhado, do estofamento ao painel. Ele colocou a chave na ignição e o motor funcionou. Os vidros elétricos podiam ser fechados? Não tentou isso.

Em casa, guardando o carro na garagem, a mulher apareceu para perguntar o que havia acontecido. Ele apenas disse: sobreviveremos.

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