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Num futuro não muito distante, quando o que conhecemos por civilização estiver completamente esquecida, sem que sobrem nem registros de nossa passagem pelo planeta, a espécie viva que nos suceder vai encontrar espalhados por todos os cantos os restos daquilo que dominou a nossa época – fósseis de vários modelos de carros.

Surgirão hipóteses de que o planeta era habitado por esses estranhos seres, os automóveis, que se proliferaram em formatos diferentes, disputando o mesmo espaço. Esta promiscuidade e o superpovoamento é que teriam determinado o seu fim.

Eis a tese dos cientistas. Os místicos achariam que a grande quantidade de carcaças de veículos era a prova de uma pré-história repleta de deuses. Haveria os deuses do bem, carros com aspectos agradáveis, e os deuses do mal, os tanques de guerra, submarinos, aviões de caça e os improváveis seres de apenas duas rodas.

Os carros são a salvação e a perdição de nosso tempo.

Poluem, ocupam espaços destinados aos seres humanos, consomem matéria-prima e energia e atormentam a população com o seu ronco ensurdecedor. Mas, na primeira crise da economia, incentiva-se, com isenção de impostos, a compra de mais e mais veículos. Potência do bem e do mal a um só tempo.

Quando nossa filha começou a desenhar, ela adorava rabiscar flores minúsculas, começando a sua composição por um círculo, que seria o centro da flor. Eram casinhas, árvores e jardins que não acabavam mais. E sempre nos colocava os três no quintal. Não a incentivávamos para que tivesse este entendimento das coisas. Isso talvez fosse uma predisposição genética para reafirmar a natureza familiar (uterina) da mulher.

Agora, com o nascimento temporão de um menino, estamos revivendo este momento de descoberta do poder de representação do mundo. Nosso filho, com um ano e meio, ganhou uma mesa, cadeira, giz de cera e muito papel. Ele adora colher flores no jardim e brincar com as plantas, e ficamos felizes quando ele rascunhou os primeiros círculos. Desenhará flores, pensamos. Mas os seus círculos são os rudimentos das rodas do carro que ele ainda não consegue caracterizar bem.

Seu universo gira em torno do carro. Em nossos passeios, adora ver caminhões, tratores e fuscas. Nas lojas, quer comprar todo tipo de carrinho e faz uma expressão de espanto quando vê modelos novos. Penso que, para o menino, o carro, muito mais do que uma simples possibilidade de brincadeira, é o exercício da conquista do mundo. A casa é a máquina de ficar. O carro, a máquina de partir.

Nosso filho organiza suas miniaturas no sofá, que fica parecendo um pátio de montadora de automóveis. Depois, com sua mãozinha ainda descontrolada, promove um acidente, jogando tudo no chão e se divertindo com seu poder destrutivo.

Ainda haveria algum equilíbrio se nossa filha se contentasse com os domínios domésticos. Mas, aos treze anos, ela só se interessa por aquilo que está distante. E faz algumas semanas que está aprendendo a dirigir.

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