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Alguns anos atrás, tive que passar um feriadão inteiro em Brasília, no velho Hotel Nacional. Não tendo o que fazer, perdi-me pelas ruas esvaziadas da capital federal, vagando como um doido. Dias antes, eu havia comprado um caderno ordinário e umas canetas Bic. Em viagem, preciso deste material de anotação, mesmo que não tenha planos de escrever nada. Saber que ali, ao meu alcance, no criado-mudo de um quarto provisório, o escritor está a postos. Posso acordar de madrugada e anotar uma bobagem qualquer, ou rascunhar um poema. Sendo várias coisas ao mesmo tempo, com obrigações em mais de uma área profissional, aproveito cada impulso para a escrita.

Nessas horas, fico grato à condição de escritor, que não depende de um ambiente especial nem de instrumentos mais raros – bastam-me o papel e a caneta esferográfica.

Em Brasília, naquele feriado, eu tinha tais apetrechos. E havia tempo de sobra. Resolvi então percorrer a cidade a pé. Todos sabem que Brasília foi feita para o carro. Minha opção tinha assim um sentido subversivo. É possível conhecer esta cidade num ritmo mais humano? Fazia calor e eu quase corria pelas ruas despovoadas. Não levava comigo cadernos, mas destilava com o suor todo um rancor pela cidade dos escândalos e das mordomias. E ia escrevendo em voz alta, de forma quase gritada, mas interiormente, um poema extenso.

Desde a infância, me agradam os andarilhos urbanos. Estão em todos os lugares, sempre numa urgência caricata. Não precisam chegar, pois não têm compromissos, mas fazem a eterna ronda. Em vários momentos, pensei que, se enlouquecesse, eu me tornaria um andarilho desses.

Naquele fim de semana, estive louco. Louco à minha maneira, tocado pela urgência de viver uma poesia ácida contra Brasília, onde eu não tinha nenhum conhecido, e para onde eu havia ido por motivos de trabalho. Lembro-me de ter tomado cerveja num bar da rodoviária, e de percorrer toda a Esplanada dos Ministérios com uma vontade doida de urinar. Eu suava. Não sei quantas horas gastei nesta viagem, nem onde enfim pude me aliviar, mas passei uma experiência sensorial extremamente opressora.

No final da tarde, voltando ao Hotel Nacional, resgatei o caderno e a caneta; suado e exausto, sentei-me em uma das mesas ao lado da piscina, na companhia de um balde com gelo e muita cerveja. Foi nesta circunstância que fiz, num único e longo jato, um poema contra Brasília.

Neste estado de entrega total a um texto, escrevo com letras grandes, deixando sempre linhas em branco e usando apenas uma face das folhas. Não paro para reler, nem mesmo para buscar uma palavra mais adequada. Tenho comparado este processo ao download de arquivos. Eu apenas baixo um texto, para usar a linguagem computacional.

Enchi o caderno com os versos meio à la Walt Whitman, intitulando-os "Ode/ódio a Brasília".

Todos odiamos Brasília em algum momento. Quando um novo escândalo estoura, lá estão as imagens dos prédios de Oscar Niemeyer servindo de pano de fundo para a corrupção, a impunidade, a falta de vergonha. Num contexto de tensões constantes, é preciso detestar algo. E, quem não tem nenhum inimigo de carne e osso para projetar toda a sua frustração cidadã, escolhe esta cidade para encarnar o inimigo público número um.

Comigo não foi diferente, e não apenas naquela vez. Também cometi o equívoco de ligar a arquitetura de Niemeyer aos vícios políticos do país. No poema, eu falava de uma arquitetura e um urbanismo desumanos, avessos às pessoas e marcados pela desproteção. Era um texto raivoso, que se queria corrosivo.

Nunca tive ânimo para digitá-lo. Abria a gaveta e o encontrava lá dentro. Não li nenhuma linha daquele texto escrito tão explosivamente. Cessado o impulso que o produziu, ele já não me interessava. Um dia não achei mais o caderno, e julgo que ele esteja perdido para sempre.

Cumpriu, no entanto, a sua função. Extravasei o meu ódio pela cidade. Catarticamente, ele serviu para me livrar de uma visão galvanizada de Brasília, recusando a significação política tão arraigada em nosso imaginário.

Continuo fazendo minhas viagens de trabalho à cidade, onde passo momentos de solidão. Nunca mais tinha me hospedado no Hotel Nacional, mas recentemente estive lá e me lembrei de tudo isso.

Hoje, caminho nas madrugadas de Brasília e gosto de freqüentar seu comércio popular, tão tumultuado, meio como um camelódromo. Admiro a confusão social das ruas, os vendedores de salgadinhos nas esquinas, e principalmente a paisagem arquitetônica que continua sendo criada por Niemeyer.

Todos reclamam que seus prédios não funcionam, e há críticas ao seu projeto para a Biblioteca Nacional de Brasília, que só recentemente foi construída e já passou por adaptações. Confesso que isso não me revolta mais. Uma biblioteca existe também para ser um símbolo.

Vejam quão tolerante me tornei. É que Brasília tem me encantado de forma crescente. Caminho no Parque da Cidade. Ou próximo da Torre de TV, com toda a paisagem da Esplanada em meus olhos matinais. Embalado por passos líricos, eu me entrego a uma cidade que, mesmo feita para os carros e altos cargos, aceita ser conhecida a pé, nesta irmandade com a paisagem que os só os andarilhos estabelecem.

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