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Uma biblioteca particular deve ter extensões humanas, evitando ultrapassar um número de livros que possam ser lidos numa vida dedicada à leitura, mas não só a ela. Penso nisso enquanto organizo as cinco caixas com obras que recebi nos últimos três meses, e que não pretendo ler. Antes, corri os olhos pela capa, pelas orelhas e pelo miolo, buscando algum motivo para dedicar-me àqueles livros ou para guardá-los. Não encontrei nada que me prendesse.

A velha imagem do leitor que lê até bula de remédio é pura ficção. Todo leitor de verdade é altamente seletivo. Preso à sua necessidade de palavras em dose certa, não vai se intoxicar com os textos terríveis das bulas de remédios. A impiedade é a marca de quem passa a vida entre livros, sufocado pela proliferação de obras indesejáveis.

Assim, minha biblioteca não é grande, e tenta crescer no mesmo ritmo de minhas leituras. Já escrevi isso algumas vezes, mas continuo incompreendido. Como sou autor de crônicas sobre este e outros aspectos de minha pequena coleção, todos acham que tenho um acervo desmedido. Até José Mindlin já me escreveu dizendo que pretende visitar minha biblioteca – será uma grande decepção.

É como se as pessoas não entendessem que um leitor profissional, como é meu caso, será tanto melhor quanto menor for seu acervo de obras válidas. E que coleciono livros com espírito crítico, evitando buscar prazer na posse de obras raras ou simplesmente na compra de mais e mais títulos, que permanecerão virgens nas prateleiras, apenas para embasbacar os otários e ilustrar fotos pretensiosas.

Meu negócio é a leitura e só secundariamente a guarda de livros.

Esta compreensão me fez perceber quanto pode ser insuportável o bombardeio que os autores fazem contra este alvo desprotegido que é o leitor ou o crítico.

Sou sujeito e objeto nesta guerra.

Tímido, quando lancei minha primeira coletânea, não tive coragem de distribuí-la a estranhos. Lembro-me que fui assistir à palestra de um escritor paulista e levei o indefectível envelope de papel pardo. Ao final da fala, entreguei meu livro, justificando-me:

– A única qualidade é que é um volume leve e pequeno, pode ser abandonado em qualquer lugar.

O escritor riu e não disse nada. Nunca me respondeu. Por precaução, não deixei o endereço no envelope.

Hoje, meus exemplares de autor ficam comigo até que alguém peça, implorando-me o envio. Mas nem sempre foi assim. No começo, tentei mandar obras para os mais íntimos e para jornalistas que escrevessem sobre lançamentos. Fazia uma lista, que diminuía a cada publicação. Quem não acusava recebimento era eliminado das remessas seguintes. Passei a deixar este trabalho à editora, que tem lá os meios dela.

Mas, ao publicar Pisador de horizontes pela editora de minha universidade, tive que providenciar uma lista de divulgação. Escolhi apenas 23 pessoas que eram de meu círculo de amizade e que escreviam sobre poesia. O volume foi enviado, e logo o encontrei, por acaso, num sebo virtual em São Paulo. Um dos amigos tinha me passado adiante. Como evito autógrafos, não poderei saber quem me descartou com a mesma impiedade com que afasto os livros que não me interessam.

E acho que deve ser assim mesmo o bom leitor, uma pessoa que não se constrange diante de amizades, conveniências e interesses.

Com a ironia feroz que o distingue, o desabusado Fausto Wolff comenta a vocação do jornalista de cultura no Brasil em A milésima segunda noite (Bertrand, 2005): "Jamais tentei a crítica literária porque no Brasil só se publicam edições baratas muito difíceis de o crítico vender nos sebos. No dia em que os editores começarem a me enviar livros caros, cheios de imagens renascentistas, que podem render um bom dinheiro nos sebos, contem com minha benevolência" (p. 315). Sábia decisão.

Fico com dó do amigo que vendeu meus poemas, deve ter conseguido uma cotação muito baixa. Talvez tenha dado meia dúzia de obras similares para poder pegar em troca o que lhe interessava. Mas o fato é que a crítica não é mesmo uma área promissora no Brasil, e Fausto Wolff achou os culpados – os editores que não investem na qualidade gráfica.

Escolado, logo depois de um lançamento meu, evito passar pelos sebos. Há sempre, nas prateleiras, uma boa quantidade de volumes com os carimbos de ‘cortesia do editor’. Raramente encontro algum com dedicatória, porque sou cada vez mais parcimonioso na hora de transferir a posse nominal do livro a alguém. Já cheguei a fazer remessas apenas com um cartão assinado. Tenho poucos amigos, não quero perdê-los por uma bobagem dessas. Melhor que nunca saiba quem não dá valor ao que escrevo.

Contraditoriamente, desfaço-me sem pudores dos livros recebidos, com ou sem dedicatória. Movido por bons sentimentos, não tiro vantagens econômicas. Recolho os títulos que não irão para minhas prateleiras e dôo a bibliotecas públicas. Parece-me o destino mais nobre para as obras que recebemos.

– Mas há algo de maquiavélico nisso – repreende-me meu mestre –. É uma forma de manter as obras renegadas ao seu alcance.

Tenho que admitir que ele tem razão. Aliás, ele sempre tem razão.

Os livros que transfiro para a biblioteca estarão sempre lá para futuras consultas. Mas existe outro sentido menos egoísta para este ato. Se eu não os li, alguém pode encontrar neles um prazer que eu não soube reconhecer, por ignorância ou por cegueira.

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