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Havia um descompasso de horário em minha família. Sempre acordei muito cedo, entre as três (nas noites de pouco sono) e as seis horas da manhã (nas noites mais tranqüilas) – um pouco por herança genética, venho de uma família de insones incorrigíveis, que ficam pensando na vida e em seu sentido; um pouco por hábito, pois durante a infância, meu padrasto madrugava para preparar café e ouvir rádio na cozinha, acordando-nos com o cheiro de café e com a voz potente de um radialista. Hoje, não ouço rádio e tomo café solúvel, mas me antecipo ao sol. Por isso, quando construí a casa em que moro, e onde espero morrer, mas que não seja logo, alinhei meu quarto ao sol-nascente e fiz uma parede com tijolos de vidro. Assim, o quarto é iluminado quando surge o dia e, como já faz algum tempo que estou acordado, posso apagar a luminária de minha mesa de trabalho.

Até semanas atrás, apenas eu sofria essas crises. Recebi por isso o apelido carinhoso e crítico de "O Maníaco da Madrugada". Filha e mulher, insensíveis à minha formação militar, embora eu jamais tenha feito o serviço militar, dormiam até um horário civilizado, segundo elas, deixando-me sozinho com os livros e os passarinhos inoportunos. Eu sempre tive uma desculpa fatalista: madrugar é minha sina.

Agora, minha filha está estudando pela manhã. Achei que seria uma dificuldade acordá-la às seis horas, mas ela própria programa o celular para tocar neste horário, levanta-se, arruma a mala, toma banho, põe o uniforme e, depois, todos juntos, preparamos o café. Ela gosta de dormir, mesmo assim não reclama e desperta disposta. Não foi o rádio o responsável por esta mudança, mas o toque deste aparelho cada dia mais presente em nossa vida. Já não usamos relógio, despertador e calculadora. O celular dá conta destas e de outras funções. Tenho então que ser grato ao aparelhinho com toque suave que sacode minha filha toda manhã. Embora eu já esteja acordado, prefiro não me intrometer.

Deixamos nossa filha na escola às sete e vamos direto ao clube do bairro, a apenas umas quadras de casa. Depois de exercícios de alongamento, caminhamos, minha mulher e eu, na pista de atletismo que contorna o campo. Neste horário, só há o vigia e uns poucos insones. É agradável andar vendo os prédios no centro da cidade e os bairros mais distantes, pois o clube fica em posição estratégica. Os desportistas extemporâneos se cumprimentam, desejando-se bom-dia, pois fazemos parte de uma religião, a dos que levantam cedo. Compõem nosso grupo alguns médicos e é sempre uma segurança tê-los por perto. Mas são principalmente as mulheres que dominam este horário. Não há jovens nem atletas, todos já cruzamos a fronteira da meia-idade e a da balança. Gosto de pensar que somos sobreviventes, tentando uma vida mais saudável, alongando nossa existência não apenas por meio das atividades corporais mas principalmente por aproveitar melhor o dia.

Cada um tem um estilo. Há os que andam lentamente. Os que apertam o passo. Os que correm um pouco. Assim, nós nos cruzamos várias vezes e, mesmo sem manter conversas, nos conhecemos de vista.

Contemplo a grama sempre cortada tanto nos campos de futebol quanto nas áreas ajardinadas. Tudo vive limpo, embora haja muitas árvores. Os muros do clube estão caiados. E isto também é um conforto. Saber que um pequeno pedaço da cidade permanece em ordem. Vendo a grama aparada, penso que, ao chegar em casa, vou fazer a barba e tomar uma chuveirada para iniciar o dia.

No clube, encontro plantas e flores que eram comuns na minha infância. Roseiras, margaridas, palmas, onze-horas e uns pés de goiaba – dessas goiabas vagabundas, que ficam pequenas e estão cheias de pintas pretas, provavelmente de ferrugem. No final das atividades, é comum flagrar mulheres e homens colhendo nos galhos mais baixos as goiabinhas maduras, não por economia, só para recuperar o gosto matinal de tirar fruta do pé. Mesmo não querendo aparentar uma juventude que, uns mais outros menos, todos já perderam, nós nos reencontramos com o tempo da infância neste assalto às goiabeiras.

Não, não quero ficar preso a esta fase da vida. Aceito meu corpo de agora, com suas recentes limitações. Nunca nutri fascínio por corpos juvenis. Venho envelhecendo com a sabedoria de me entusiasmar pelos corpos da minha idade. É meio deprimente o desejo por pessoas que poderiam ser nossas filhas ou netas. Não tenho uma visão moralista, mas nos corpos alheios quero me reconhecer, como me reconheço nestas plantas antigas.

Evito o clube apenas aos domingos, dia dos atletas, que correm na pista ou jogam futebol nos campos, e dos jovens que passaram a semana em academias de ginástica e aparecem mais para exibir uma saúde meio artificial do que para exercitar-se. Aos domingos, aproveitando o pouco trânsito da manhã, percorro o centro da cidade, cruzando com um ou outro boêmio na difícil volta ao lar.

Durante a semana, sei a hora de interromper a caminhada. É quando chegam os funcionários do clube. Cada um dos madrugadores vai tomando o rumo de casa e não sabemos quem ocupará nosso lugar. Com certeza, será alguém sem parentesco espiritual conosco.

Ao lado do clube fica a igreja do bairro. Igreja católica, estranhamente construída com telhado em forma de pirâmide, talvez para captar a energia cósmica. A igreja fica fechada, mas há uma capela aberta para que os devotos rezem um pouco. Alguns eventualmente passam pela capela. A reza ali é uma extensão de nossas caminhadas.

Significativamente, a paróquia se chama Nossa Senhora da Saúde, santa de nossa dupla devoção.

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