• Carregando...
Lima Barreto:alcoolismo para suportar o preconceito racial | Divulgação
Lima Barreto:alcoolismo para suportar o preconceito racial| Foto: Divulgação

O romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1881-1922), projetado em 1904 e publicado postumamente em 1948, fecha o grande parênteses autobiográfico de sua obra, iniciado com Recordações do Escrivão Isaías Caminha (folhetim de 1907). Se, neste livro, ele projeta a trajetória de um jovem mulato no meio jornalístico de um Rio de Janeiro dominado por asnos pomposos, deixando o seu triste fim apenas entrevisto, em Clara dos Anjos os descaminhos dos personagens se assemelham muito ao do próprio autor, o que lhe dá uma intensidade maior do que qualquer outro de seus romances.

Embora o seu fio condutor seja a situação de vulnerabilidade de uma mulata pobre numa sociedade preconceituosa, que a vê apenas como móvel de lascívia, a grandeza deste romance não reside apenas neste eixo narrativo. Clara dos Anjos, já pelo nome, vive um desejo de pureza e de brancura, mas acaba numa armadilha social: criada no isolamento de um lar estreito, sem educação sólida, alimentada pelas modinhas dengosas, ela é presa fácil para um famoso deflorador. No final, ela descobre o lugar que lhe reservaram na sociedade; ao ser enxovalhada pela família do bandido que a engravida, é chamada de negra, condição que, somada à de mu­­lher, lhe tira todos os direitos. Nos seus devaneios matrimoniais, ela sonha com uma "casa branca no morro" ao lado do amante de falsa origem inglesa, mas ao olhar o céu identifica uma mancha negra, anúncio de um destino incontornável. Du­­rante todo o livro ela é apenas uma pessoa, mas na última frase do romance conquista uma consciência de seu gênero e da sua raça: "Nós não somos nada nesta vida". Deve, a partir daí, "educar o caráter, revestir-se de vontade [...] e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente" (p.294).

O centro desta obra é a fidelidade às origens. Ligado ao subúrbio e seus moradores, Lima Barreto deu status literário a um idioma falado. Em Clara dos An­­jos, aparece pela primeira vez na literatura brasileira a palavra cara para designar pessoa. E há um uso de expressões ainda hoje questionadas pelos bem falantes – como pivete. Deste seu projeto de naturalização da língua veio o preconceito estético – vinculado ao preconceito racial – de que o autor escrevia mal. Lima Barreto escreve maravilhosamente bem, e é um dos mestres da língua, mas de uma língua portuguesa que se afastava da sua matriz lusitana, incorporando os recursos estilísticos da oralidade.

Se se aproxima da música popular pela crônica dos costumes suburbanos, ele nega o conteúdo deste gênero, culpando-o pela ilusão amorosa que cria nas pessoas. Clara e o pai são apaixonados pelas modinhas e esta acaba seduzida por um modinheiro. O autor se insurge contra a percepção meramente auditiva do mundo. Do pai de Clara diz: "Não compreendia um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o ‘som’, o ‘ouvido’" (p. 217). Reconhecer o valor literário da língua falada não significa endossar todos os seus produtos. Lima Barreto, tal como o seu alter ego Isaías Caminha ou Policarpo Quaresma, acredita no estudo, mas sem negar o universo social dos excluídos.

Neste romance esplêndido, crescem as histórias dos condenados à priori à miséria. O grande personagem do livro é o bêbado, o homem ou mulher que se entregou ao álcool – tal como o próprio autor – como uma forma de suportar as provações. Assim é o poeta Leonardo Flores, totalmente íntegro, ébrio e enlouquecido, amado pelos fi­­lhos e pela mulata Castorina. Nin­­­­guém entende seu vício:

"– Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?

– É, Engrácia, por quê?

– Por que ele então bebe tanto?

– Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos, ninguém sabe – observou o marido". (p.284)

Se os pais de Clara não entendem as razões dos alcoólatras, o livro todo parece dizer, em nome do escritor: bebemos para suportar o desprezo com que tratam os de nossa cor.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]