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Está aberta a temporada de caça ao povo, esporte que se pratica aqui no Brasil de dois em dois anos. Personalidades roceiras ou operárias deixam a periferia e se fantasiam de si mesmas para protagonizarem programas eleitorais. Uns políticos beijam e abraçam populares, outros apenas se deixam misturar a eles, uns falam em nome dos excluídos, e há ainda os que se dizem seus legítimos representantes.

Mas o povo não é apenas assunto e uma cara sofrida no horário eleitoral gratuito. É também o principal ator. E vemos desfilar no espaço reservado aos candidatos a vereador uma fauna que nos conduz do constrangimento ao riso e da indignação à piedade. São os famosos 15 segundos de glória. De glória para eles; de martírio para nós.

Odeio a noção de povo, algo que nem chega a existir. Povo não passa de uma abstração ideológica, de caráter discriminatório. Classificamos assim determinada faixa social para podermos falar em nome dela, propondo soluções que não são soluções, mas iscas para a urna. Povo foi uma noção inicialmente usada pelos nacionalistas, que entendiam este conceito como coletivo de pátria. Com a entrada dos preceitos socialistas – e suas derivações contemporâneas –, povo passou a ser a classe explorada. Já no mundo do consumo, ele representa certa faixa de poder aquisitivo.

Ou seja, a idéia de povo está sempre a serviço de algum interesse. E é uma noção social paralisante. Enquanto pensarmos nesses termos, estaremos esquecendo as pessoas. Políticos e marqueteiros têm orgasmos múltiplos ao pronunciar a palavra povo, mas o artista vê o indivíduo. Na literatura, não vale o que pensa ou o que faz o povo, vale o que pensam e o que sentem pessoas nomeadas, com vida real, com uma história particular, que não se repete em nenhuma outra. Os estereótipos surgem quando imperam as generalizações. Daí todos os crimes, do assassinato à corrupção, serem justificáveis em nome do povo.

É muito forte o tabu da popularidade. Os políticos vestem roupas esportivas para pertencer à "sua" gente. O possessivo "sua" não deve ser entendido como denominação de origem, mas como recurso retórico. Pois nenhum político que tenha chegado a uma posição de destaque é povo. Ele já é indivíduo. Tem um nome, uma história pessoal, um capital simbólico. E no meio do povão ele figura como pavão. Suas roupas são melhores (identificamos a qualidade do tecido, as etiquetas da moda, a limpeza) e a sua cara de fartura se destaca nesses cenários de pobreza.

Mesmo o elitista assumido, com dificuldade de aparecer entre populares, mesmo este ser das alturas sociais gosta de falar que administra para o povo. Que faz obras para o povo. Ele é um peixe fora d’água, mas quer pertencer a este outro mundo, e tirar vantagem disso. Depois de cumprimentar alguém na rua, coisa que só faz em período eleitoral, ele desinfeta as mãos com álcool.

Acompanho a campanha na televisão em cidades por onde viajo. E já estou com uma raiva violenta do povo. Fico brigando com a televisão.

Quando vejo um digníssimo candidato a vereador fantasiado de algo, e são muitos, grito:

– Você não é povo, é apenas um palhaço.

Aparecem senhoras simples falando em nome das mulheres que devem ocupar seu espaço. Dou um salto na poltrona e ameaço:

– Que tal ocupar o espaço sideral, minha filha.

E há os que falam em mudança. Nesta hora, não tenho palavras, pois não agüento ouvir essa lengalengagem, e mudo irritado de canal.

Algumas vezes descubro um filme qualquer, desses enlatados que lideram a audiência, e eu, tão crítico em outros momentos, logo me dedico a ver uma perseguição de carro, interessando-me pela coisa.

A salvação para quem não é povo se chama tevê a cabo. Podemos descansar da baboseira que toma conta dos programas eleitorais. Zapeamos um pouco até o fim do desfile televisivo do grande carnaval de animais. É raro, mas chego a encontrar alguma entrevista com pessoas inteligentes neste horário, e saboreio uma boa argumentação, tão improvável no meio político.

Seja elite ou povo, falta a nossos candidatos inteligência. Convencionou-se que para seguir uma carreira na área é preciso babar obviedades. Alguns que tentam parecer sábios são apenas chatos, uns papagaios inconvenientes. A verdadeira inteligência é simples, transparente, impopular. Por isso talvez o pensamento não seja comum em política.

Tenho imaginado um formato diferente de debate com os candidatos. Perguntaríamos qual o último livro lido por eles. Ou como vêem o aquecimento global. Coisas assim. Temos que tirá-los da pauta local em que naufragam. Não é preciso saber o que fizeram ou o que vão fazer, e sim se eles têm capacidade para pensar, para buscar soluções complexas, pois mesmo o prefeito de uma cidadezinha terá que lidar com a crise global. Será bom administrador o político que souber pensar. Por isso nossa política é sempre essa tragicomédia.

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