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Quando li pela primeira vez o poema "Catar Feijão", que João Cabral de Melo Neto publicou em A Educação pela Pedra (1965), identifiquei biograficamente a metáfora. O poema comparava a escrita a uma tarefa corriqueira em meus tempos de criança. Éramos nós que catávamos os ciscos e as pedras do feijão nosso de cada dia.

Em casa, até hoje, só cozinhamos feijão carioquinha, eventualmente o preto. Mas outras variedades habitam minha memória: lus­­­­troso, pardinho, rajado, bolinha etc. Minha mãe retirava de uma lata alguns copos cheios de feijão, despejando-os sobre a mesa da cozinha. Eu me sentava e tinha o início uma tarefa com função psicológica. Durante alguns minutos, esquecíamos do mundo, tomados pela grande responsabilidade de separar os alimentos das impurezas.

Os dedos puxavam pequenas quantidades de feijões, espalhando-os na fórmica vermelha, e com o indicador da mão direita íamos tirando os amassados, as bandinhas (metades de feijões que ha­­viam sido quebradas pela trilhadeira), as palhas, os torrões, as pedras. Depois de vencer pequenas parcelas, com uma bacia no colo, puxávamos o feijão limpo para ela. O barulho produzido pela queda lembrava o da chuva de granizo nas vidraças. Ao fim, íamos até a torneira da pia para lavar o feijão. Uma senhora da cidade, ob­­ce­­­­­­cada pela limpeza, lavava o feijão com sabão em pó. Embora não chegássemos a tanto, havia o ritual das três águas.

A primeira água saía marrom, quase uma enxurrada.

A segunda se tornava transparente.

Só depois da terceira o feijão ficava de molho.

Mesmo depois desta lavação, a cor do carioquinha cozido e temperado, servido na mesa em um caldeirão, me lembrava a terra.

As lavouras de feijões restavam como uma atividade não mecanizada. Destinavam-se a esta cultura as regiões mais montanhosas. O plantio era feito muitas vezes com máquinas manuais, as famosas matracas, que cantavam nas mãos rudes e nos passos rápidos dos agricultores, perfurando o solo para depositar a semente, numa sincronia que dava gosto de ver e de ouvir. Plantar não se constituía na tarefa mais difícil.

Colher é que eram elas. Arrancavam-se os pés de feijão com a mão, trabalhando agachado o tempo todo. Nas encostas rochosas, o ramo seco saía com muita terra e com pedras nas raízes. Os homens iam fazendo bandeiras de forma alinhada. Depois passava alguém recolhendo os feixes e levando tudo para montes maiores. Em torno destes montes se instalava a trilhadeira, uma grande debulhadeira arrastada por jipe ou por animal.

A trilhadeira tem uma boca que deve ser alimentada sem parar e os trabalhadores mais resistentes se revezavam neste ofício exaustivo. Cilindros com dentes alternados batem o feijão, soltando o grão da vagem e esta do caule. Tudo passa por um sistema de ventilação, que separa o material pesado da palha. A parte restante cai depois em uma peneira que, movendo-se horizontalmente o tempo todo, deixa passar apenas o feijão, e as impurezas que tenham o mesmo tamanho.

Por isso, havia tantas pedras e torrões nos feijões da minha infância. E a água, na hora de la­­var, saía sempre escura.

Quando me mudei para Curitiba, no começo dos anos 1980, e passei a comer em restaurantes simples do Centro, vez e outra encontrava uma pedra no feijão. Na época, os dentes eram fortes e enfrentavam com heroísmo tais acidentes. Eu tirava a pedrinha da boca, deixava na mesa sem toalha e continuava comendo, lembrando das refeições de casa, da época em que eu ajudava na lavoura.

Passaram-se décadas e eu me esqueci de tudo isso. Estes dias, escolhendo o feijão aqui em casa para uma feijoada, notei que não há quase nada para retirar. Não vi pedras nem terra, não havia palha e muito menos grãos amassados ou bandinhas. Co­­mentei isso com a família, explicando, mais para mim mesmo do que para os outros, que agora o feijão era plantado em áreas mecanizadas e a colheita ficava a cargo de modernas colheitadeiras, o que faz com que os grãos saíam assim tão limpos. Precisamos apenas de uma água para lavá-los.

Então, aquela lição literária de João Cabral não tem hoje uma verdade biográfica para as novas gerações. O poeta termina o seu texto dizendo que, contrariamente à arte de catar feijões, a escrita exige que acrescentemos pedras ao alimento, para que ele quebre – metaforicamente, é claro – o dente do leitor, promovendo uma parada na leitura: a pedra dá à frase seu grão mais vivo:obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a como o risco.

A escrita e a leitura dos tempos que correm (e como correm!) exigem um feijão macio, que não precisa nem mais ser cozido na pressão, e que nunca trará essas pedras didáticas. Pior. A maior par­­­­­te dos pratos do cardápio literário já vem processada e dispensa até mesmo a mastigação.

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