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O veículo confortável com serviços especiais era uma velha jardineira dos anos 50, com a frente de caminhão e uma carroceria detonada. As bagagens foram amarradas no teto, junto com as tranqueiras de viagem dos índios, que eram a maioria dos passageiros. Enfim, chegavam à América Latina mítica.

Na saída de Santa Cruz de la Sierra acabava o asfalto. A viagem agora seria por estradas de terra, devidamente esburacadas. Eles se ajeitaram como foi possível, prontos para mais uma noite em claro. A poeira tomava conta do ônibus, e logo estavam com sede. Um funcionário da empresa começou a distribuir garrafas de coca-cola quente, empurrando pelo corredor um engradado. Todos bebiam para limpar a garganta. Depois de umas três garrafas deste refrigerante, o casal em lua-de-mel estava com a bexiga cheia. O marido então notou que o ônibus não dispunha de banheiro. O cheiro de suor era quase insuportável, os líquidos interiores chacoalhavam no compasso dos buracos e eles esperavam a próxima parada.

Que só aconteceu à meia-noite, num lugar horrível. Todos saíram correndo para um banheiro feito com uns blocos rústicos de barro cru.

Eles se recusaram a comer qualquer coisa vendida ali. Abriram um pacote de bolacha e sentiram o primeiro conforto da viagem: saber que aquele produto tinha sido feito numa fábrica brasileira. Amanheceram em Cochabamba, cidade em que cresceu o peruano Mario Vargas Lhosa. O marido então entendeu uma das imagens do romancista, a de que o Peru tinha a cor depressiva de merda. Eles olharam a cidade com seu amarelo-bosta, a falta de pintura, as ruas sujas. O ônibus estacionou num lugar que era para ser a rodoviária, mas não passava de um ponto improvisado. Eles receberam a bagagem, jogada do teto, e já compraram a passagem para La Paz. Enquanto esperavam o próximo ônibus, comeram as ‘tortillas’ que uma índia vendia na calçada e providenciaram garrafas de água mineral.

O ônibus não era melhor, muito menos a estrada. Mas agora viajariam de dia, encantados com a paisagem dos Andes. A poeira invadia tudo por mais que fechassem as janelas. Em poucas horas, todos tossiam e apenas eles tinham água. As garrafas plásticas correram entre os índios, que também sofriam a viagem. À noite, num lugar ermo, era hora de comer algo. Ele caminhou em volta do restaurante, única habitação em muitos quilômetros, visitou a casa dos proprietários, feita com os blocos cinzas de barro e palha. A paz era um presente da altitude e do deserto. Foi a primeira noite que dormiram tranqüilamente, apesar do cheiro de suor, do ônibus, da poeira e dos buracos.

A entrada em La Paz foi festejada pelos passageiros. Chega-se à cidade pelo alto, onde estão os bairros pobres, descendo-se ao centro, localizado no meio de uma cratera. Eles escolheram um hotel barato e saíram para conhecer as belezas bolivianas. A primeira visita foi a uma feira, onde compraram folhas de coca, fotografando-se diante dos sacos cheios deste produto. Comeram bobagens na feira e andaram pelas ruas, vendo carregadores indígenas subindo morros com muita disposição – mascavam a folha de coca com um punhadinho de cinza.

No dia seguinte, foram visitar as ruínas Tiahuanaco, com suas imensas imagens de pedra. Séculos atrás, fora uma região próspera. Agora era apenas um deserto visitado por turistas. No caminho, passando pelos bairros miseráveis, viram índias com seus chapéus típicos, suas saias imensas e rodadas, agachando-se no meio da rua de terra. O motorista da van explicou que elas não usavam peças íntimas e se agachavam assim para fazer, impudicamente, suas necessidades.

– O grande problema da Bolívia, pelo jeito, é a falta de banheiro – o marido brincou.

Depois de alguns dias na capital, eles partiram para uma temporada de veraneio em Copacabana, a verdadeira, nas margens do Titicaca, o lago sagrado. Tomaram uma van para fazer o trajeto. Agora, havia ar condicionado e turistas europeus. Mas a paisagem era a mesma. No meio da viagem, efeito da dieta ou da altitude, uma mulher holandesa passou mal e a van parou no descampado. A mulher caminhou o máximo que pôde, agachando-se para o difícil ritual, sem a proteção da saia rodada. Todos tentaram não olhar.

Copacabana encanta por três coisas.

Os patamares nas montanhas que circundam o lago. Destes patamares, feitos com blocos de pedra, vêm os alimentos básicos, principalmente o milho.

As trutas pescadas na água fria do lago. Trazidas do exterior, adaptaram-se à região. São vendidas em qualquer restaurante. E pela primeira vez eles comeram algo realmente delicioso.

E o lago de água salgada. Com a elevação do continente, parte do mar ficou aprisionada pelas montanhas. O lago é tão grande que a Bolívia, um país sem mar, possui uma Marinha.

Numa viagem rápida, visitaram a Isla del Sol, um dos centros do império inca, onde, segundo a lenda, ficavam os tesouros do imperador, atirados ao lago profundo quando da chegada dos espanhóis.

A viagem prosseguiu. Puno, já no Peru, depois Cusco, Vale Sagrado, Águas Calientes, aos pés de Machu Pichu – só então eles começaram a voltar. Não trouxeram muita coisa: umas blusas de pêlo de lhama (a dela é usada ainda hoje, quase 20 anos depois), uns livros de literatura, umas lembrancinhas de prata, algumas fotos, um punhado de folha de coca.

Depois de um vôo rápido, alcançavam a aduana de Puerto Soarez, ansiosos para entrar no Brasil. Alguma coisa tinha mudado neles? Eles ainda hoje não sabem. Mas nada pelo jeito mudou na Bolívia.

Na aduana, a mulher acabou detida. Os funcionários bolivianos alegaram que ela estava irregular no país. O passaporte dele trazia os mesmos vistos, mas ele foi liberado. Num ímpeto, entrou na sala onde a mulher se encontrava, o funcionário gritando que ela estava presa, não sairia tão fácil da Bolívia. Ele estendeu uma nota de cem dólares e o mesmo funcionário amaciou a voz, guardando a cédula no bolso do uniforme:

– Hasta la vista, don – e fez uma mesura.

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