• Carregando...

São periódicas as tentativas de organização que faço aqui na biblioteca. Colocar livro no lugar, jogar papel fora, arquivar o que interessa, essas coisas a que a vida de leitor e escritor nos obriga. Estava recolhendo as certidões a uma pasta transparente quando encontrei meu histórico escolar do ensino de primeiro grau, datado de 22 de dezembro de 1979. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o timbre da folha impressa – era o formulário 003 da Imprensa Oficial do Estado do Paraná, órgão que, duas décadas depois, eu viria a dirigir. Confesso que isso mexeu comigo.

O menino que se formava na Escola 14 de Dezembro, lá em Peabiru, não podia nem imaginar por quais caminhos sua vida seguiria. Naquela época, eu estava empenhado em arrumar um serviço no comércio e queria estudar à noite. Não sabia ainda que minha família concordara em me mandar a um colégio interno. Eu queria ir para um seminário, mas eles acabaram me colocando num colégio agrícola, cujo lema era assustador: "aprenda a fazer fazendo".

Meus caminhos sempre foram tortos. Aliás, só existem caminhos tortos. E, por causa das muitas curvas, não podemos ver o que nos aguarda logo ali em frente. É isso que penso olhando minhas notas.

Só consegui médias acima de 8,0 em Educação Artística, e isso de forma indevida, pois era minha mãe quem fazia as tarefas manuais, dada minha incapacidade crônica para qualquer coisa que exija o mínimo de coordenação motora fina. Tirando então estas notas roubadas, meu histórico é farto em seis. Está certo que não é um seis seco, mas com alguma gordurinha. Em Comunicação e Expressão, por exemplo, na 5ª série, eu passei com 6,7. Fui piorando nos anos seguintes: 6,1, depois 6,2, para concluir a 8ª série com uma pontuação vergonhosa: 5,1. Um pouco menos e eu teria sido reprovado. Este foi meu desempenho escolar e tudo que ele prometia. Se alguém falasse a meus professores que eu seria escritor, todos ririam, pois só poderia ser ironia.

Ironia ou não, eis-me aqui. Não apenas escritor, mas professor universitário também, olhando com nostalgia para meu histórico, tudo muito bem datilografado. Sempre admirei um formulário preenchido adequadamente, ainda mais à máquina. E pensando nisso fui em busca de meu diploma do curso de datilografia. Para um escritor da minha geração, aprender a datilografar era quase aprender a escrever. Copiávamos textos de grandes autores como se fossem nossos; lembro-me do esforço para datilografar, alguns anos depois, o longo poema "Uivo", de Allen Ginsberg. Fazia a cópia com um sentimento de posse, como se aquele texto meio bíblico estivesse saindo de mim. Claro, colocava lá o nome do autor, mas sentia um orgulho de ter batido a coisa toda. Então, mais importante do que os conteúdos de Comunicação e Expressão era a aprendizagem da datilografia. O problema é que também não fui bom nisso. Está lá a nota final: 6,0.

No colégio agrícola – não guardei o histórico –, minhas notas não melhoraram. Quase reprovei. Meu destino era ser digerido pelo sistema de ensino para acabar jogado numa profissão braçal qualquer, como previa meu padrasto. O que então me livrou disso?

Meio sem saber para quê, pois minha timidez me afastava de qualquer atividade em que me expusesse, entrei no Curso de Letras em Mandaguari. Tinha tentado em vão o vestibular para Direito, mas Letras agora me permitiria trabalhar e estudar. Foi com este intuito que comecei a frequentar as aulas. Quando vi, estava metido no projeto de ser professor, professor e escritor, pois este era um sonho secreto que eu acalentava desde o colégio agrícola.

Foi a Faculdade de Letras que me salvou. Mais especificamente dois professores.

Inicialmente, a professora de literatura brasileira. Maria Aparecida Peres falava dos livros de uma maneira afetuosa, como se os autores fossem da família, e isso nos encantava. Quando começamos – nós, os poucos do curso que gostavam de ler – a frequentar a casa dela, em busca de leituras e informações, descobrimos que a biblioteca era o centro daquela casa que ela dividia com uma irmã também solteira. Comecei então a sonhar com um lugar onde eu guardasse os livros que em breve poderia comprar.

Um dia, quando reclamei de uma nota, ela foi categórica: cresça primeiro. Levei aquilo a sério e passei a me esforçar mais para merecer alguma admiração. Dela herdei esta idéia borgeana de que o paraíso tem a forma de uma biblioteca, não de uma biblioteca gigantesca, mas de uma coleção de obras com medidas humanas. Viver é acumular livros lidos.

O outro professor que me salvou ministrava uma disciplina pela qual eu não me interessava – Linguística. Ennio José Toniolo era um perfeccionista. Trazia seus roteiros de aula datilografados e em envelopes numerados. Nunca se atrasava; não saía antes nem deixava conteúdos sem dar, pois tinha um senso de acabamento muito apurado. Quando parava de falar, sabíamos que a aula findara. Mantinha-se entusiasmado o tempo todo, mesmo com os alunos medianos, como era meu caso. Tudo que sei de didática – disciplina dada por outra pessoa, na qual minhas notas continuaram baixas – foi copiado das aulas do professor Ennio.

Depois do encontro com estes dois professores, estavam sedimentados os alicerces para que eu pudesse chegar a ser quem eu era, uma persona tão secreta que meu histórico nem de longe a denunciava.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]