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Houve um menino que morreu aos quatro anos. E este menino um dia fui eu. Ele nunca tinha morrido antes, e estranhou esta nova situação que trazia tantas novidades. A primeira vez é sempre difícil, depois a pessoa se habitua. O ser humano se habitua a tudo. E uma hora já nem sente aquilo que parecia insuportável.

Hoje, morro todas as vezes que alguém me despreza ou me atinge com uma verdade mais áspera. Morro quando sou incompreendido. Morro quando olho uma mulher por quem sinto uma carência doentia e ela nem me vê. Morro ao cruzar com uma pessoa em estado terminal. Morrer é uma coisa cotidiana nesta altura da vida – nesta fundura da vida. Faz parte do grande ensaio para aquilo que nos espera logo ali, ou um pouco mais além.

Mas quando eu era criança, achava difícil, muito difícil morrer. Como é que as pessoas conseguiam parar de respirar? Como deixavam uma faca entrar em seu corpo? Por que permitiam que uma depressão as destruísse? Não, eu não entendia esta entrega de corpo e alma à morte, este amor que a doença tem pelo doente.

E me via completamente sozinho no mundo todas as vezes que algo me matava. Talvez porque as coisas me matassem pouco naquela época – todos sempre têm mais piedade das crianças. Ou por não saber alguns truques para retornar à vida. E nestas horas eu entrava em desespero. Apavorada, minha mãe me levou ao neurologista, que diagnosticou uma lesão qualquer e me receitou um desses remédios fortes, que nos salvam nos amortecendo para o mundo. E isso não deixa também de ser uma forma de morte, apenas mais suave.

Houve no entanto um aprendizado muito importante, que me livrou da dependência deste tipo de remédio.

Eu brigava com um colega que havia me difamado sem que eu merecesse e ele me socava sem dó a cara. Minha cara é dessas que suportam desaforos sem maiores espasmos. O sangue escorria e eu continuava indiferente à dor.

– Por que você não chora, seu idiota? – ele me perguntava, irritado, mas eu não lhe revelaria jamais o segredo recém-descoberto e que me dava superioridade mesmo em circunstâncias como aquela.

Ele podia me bater muito mais, podia me quebrar o braço, me atirar ao chão ou fazer qualquer outra crueldade. Tudo pode ser exercitado contra quem já não sente dor. E eu não sentia dor. Meu colega já tinha me matado antes. Eu suportaria as piores agressões sem demonstrar nada, divertindo-me com a ignorância dele. Como é que não via que eu estava ali igual a um cadáver, sem o menor sinal de vida?

Estas mortes eram breves na infância. Logo eu ressuscitava e ia em busca de outros amigos, das alegrias possíveis, de outras meninas por quem eu pudesse me apaixonar doidamente ao primeiro olhar. Hoje, as mortes são mais demoradas, levo tempo para me recuperar. Cato meus cacos interiores, vou me recompondo com cuidado, colando cada parte, para me erguer de minha morte. É uma tarefa que exige isolamento. Tranco-me em algum lugar, muitas vezes em um livro, e fico ali lambendo as feridas, soldando tudo com saliva. Então, uma coisa qualquer, o cheiro de um bolo de fubá que estão assando em casa, o canto de algum pássaro oculto na paisagem, uma frase verdadeira lida num livro, uma luz diferente entrando pela fresta da porta, e o cadáver todo remendado volta a viver.

Claro, eu também devo matar muitas pessoas de meu convívio, produzindo nelas as mesmas decepções que me vitimam. Não as compreendo. Cometo atos indignos. Desprezo quem me procura. Ignoro os que mais me ajudam, e talvez até me amem. É de nossa essência sermos incompreendidos. Vemos os outros sempre a partir de nós mesmos. E valorizamos só aquilo que nos confirma.

Por sorte, a maioria das pessoas é refratária a estas mortes. Nossa incompreensão não lhes representa o menor perigo. E isso as blinda contra as crises. Nossos tiros são de festim para elas. Talvez produzam um arranhão, mas jamais derrubam o alvo. E elas aproveitam esta invulnerabilidade para se sentirem eternas.

Isso para mim é impossível. Sei-me não apenas frágil, mas mortalmente ferido. E morro pelas menores coisas. Tudo me atinge. Sou uma espécie de sorvedouro de sofrimento. Um choro anônimo de criança na manhã luminosa me deixa destruído. Um olhar de tristeza na moça feia e pobre me impede de amar a mulher com quem estou. O passo incerto de um bêbado me derruba na calçada. A ave bate contra a vidraça e sou eu que saio atordoado pelo quintal. Tudo me pega de cheio, colocando-me susceptível aos golpes de misericórdia, que não demoram. Os golpes de misericórdia nunca demoram.

Alguém sempre pronuncia uma palavra rude contra mim. E tombo morto na hora.

– Não é para tanto – ele diz. – Esta morte não passa de mais um de seus exageros.

Não sabe quem tenta se desculpar assim que eu vinha acumulando pequenas corrosões e que aquela palavra, que nem foi tão forte, serviu apenas para precipitar minha falência súbita. É que quando se trata de morrer eu não meço esforços.

Massacrado por mais uma morte, eu me arrasto até mim mesmo, me tranco nestes olhos onde cabem todas as dores, me recolho a um livro, a um quarto, a um silêncio, e me concentro para ganhar força e me devolver à vida.

A última morte virá quando eu não conseguir mais me impor um recomeço.

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