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Campos de Queirós, autor de Vermelho Amargo: escrita seria luta contra a morte | Divulgação
Campos de Queirós, autor de Vermelho Amargo: escrita seria luta contra a morte| Foto: Divulgação

Em um romance com estrutura de ensaio (A Louca da Casa, Ediouro, 2004), a es­­critora espanhola Rosa Montero identifica o que desencadeia o desejo de escrever: "fui descobrindo, pela leitura das biografias e em conversas com outros autores, que um grande número de romancistas teve alguma experiência bem precoce com a decadência" (p.10). A escrita seria uma luta contra a morte. Uma luta que poucas vezes foi tratada tão intensamente como na narrativa Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós.

Mais conhecido pelos livros infantojuvenis e pelo trabalho na formação de leitores, Bartolomeu é também autor de uma série de pequenos relatos autobiográficos. Seu grande tema são as descobertas formadoras que se dão na infância, as mitologias que criamos para superar as carências. Por isso, conquanto altamente autobiográfica, a sua literatura vem sempre sob o signo da imaginação: "Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa" (p.7).

Essa linguagem avessa ao realismo e aberta a construções requintadas se fez a marca do autor. Ele não quer descrever com minúcias os fatos vividos no passado, mas encontrar o seu centro simbólico e construir percepções de linguagem. Antes de tudo, são as palavras em estado de proliferação poética que conduzem o texto – palavras com alta voltagem lírica, concentradas em frases perfeitas (verdadeiros aforismos) e em parágrafos curtos que funcionam como capítulos. Os seus livros devem, por isso, ser lidos com paradas reflexivas a cada ponto final.

Vermelho Amargo é o relato de um amor total pela mãe, que morre muito cedo de câncer, formando a sensibilidade do filho num momento dramático. Como tinha dores insuportáveis, ela cantava para não chorar, enchendo a casa com sua voz terna. O autor confessará em uma entrevista: "Quando a dor é muita eu escrevo". É da dor, principalmente da dor da perda, que vem a força pacificadora de sua literatura.

No lugar da mãe, a sua pátria mais profunda, entra uma madrasta, que lhe impõe um período de exílio mesmo dentro do lar. O menino começa a sofrer com a sua obsessão em cortar fatias transparentes de tomate para as muitas bocas. Ele enxerga neste ritual a mesquinhez, o ódio e a morte, tudo representado no fruto maduro: "O tomate não exalava nenhum cheiro. É da índole do tomate manifestar-se apenas em cor e cólera" (p.25). Daí o amargor do vermelho: "desde sempre imaginei a raiva vestida de vermelho, empunhando uma faca" (p.27).

Já a mãe é lembrada empunhado um regador, no gesto vivificante de aguar as flores como quem as benze, mas ela se manifestava também no alimento carinhosamente preparado, que dava uma sustância física e principalmente anímica. Assim, o escritor vai se fazer a partir de uma educação pela ausência. Com a morte da mãe, ele aprende a ver além da realidade, descobrindo este poder que a palavra tem de preencher vazios. Privado do objeto de seu imenso afeto infantil, ele guarda consigo um amor secretamente soletrado, o que o obrigará a legendar o mundo para suportá-lo, para exorcizar a dor, tal como a mãe fazia usando a música.

Sem divisões de capítulos, Vermelho amargo tem como única marcação a diminuição do número de integrantes da família, em uma contagem regressiva. Começa com oito pessoas e termina com duas – deslocadas na distância, pois o narrador já tinha deixado a casa paterna para poder olhá-la através da névoa da memória.

Serviço: Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós. Cosac Naify, 72 páginas, R$ 39.

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