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Este ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo já era. Não me venham mais falar nele. Vamos pôr uma pedra encima. Esquecer. Enterrar. Não que tenha acontecido algo de ruim para mim, só aconteceram coisas boas, porque minha filosofia, para uso estritamente pessoal, tem sido: nada vem para tirar, tudo para acrescentar. Falei isso para meu mestre, e ele revidou:

– Quando alguém te assaltar, continue pensando assim, meu caro Dr. Pangloss.

Mas é preciso sim um otimismo à la Pangloss para suportar a dor de viver tempos tão deprimentes. E tenho feito deste otimismo minha ração diária de entusiasmo. O resultado é dos melhores.

Pago as tarifas altas de pedágio e, quando todos reclamam, concluo: que bom que estou tendo dinheiro para isso. Houve tempo em que ele era tão escasso que eu não podia nem andar de ônibus. E vem aquela reconfortante onda de felicidade, absurdamente provocada pela tarifa do pedágio.

Meu chefe me avisa que terei que trabalhar em mais um fim de semana, e não me irrito. Minha mulher protesta, pelo menos aos domingos você deveria ficar em casa. Mas já estou rindo, conformado com o regime de escravidão em que vivo. Já lidei na roça, sei que, por mais que hoje me arrebente, isso não passa nem perto de um dia no cabo da enxada. Eis-me feliz, mesmo executando uma tarefa sacal no feriado.

E é com verdadeira ansiedade que espero as contas no fim do mês, pagando-as com a devoção de um beato que contribui com sua igreja. É meu dízimo social. Por que questionar? Aquele dinheiro não era para ser meu, por mais que o tenha merecido com o suor na fronte. E como não gosto de comprar coisas, avesso a este consumismo insano, e como tenho onde morar, o que vestir, o que comer e o que ler, sou um privilegiado.

Como todo final de ano, minha filha faz sua pesquisa:

– O que você gostaria de ganhar este ano?

– Nada – respondo.

– Ano passado você já quis ganhar nada. Por que não pede algo diferente?

Amo minha filha. Por ela, até aceito esta chatice de troca de presentes natalinos. Faço um esforço danado para imaginar algo de que esteja precisando. Não acho. Meu computador, já em idade avançada, 6 anos, o que para um objeto eletrônico é ter atingido a casa dos cem, tem limitações. Não posso abrir arquivos pesados, não navego por sites com muitas imagens, não consigo baixar música em linguagem MP3, mas tudo isso é vantagem. Então, não vou trocá-lo. Poderia pedir o quê? Celular novo nem pensar. Um relógio talvez fosse algo útil. Perdi o meu mais uma vez e faz quase um ano que ando sem horas. Como nunca gostei de relógios de pulso, não vou voltar a carregá-los, até porque logo os perderei. Faço esta reflexão para minha mulher, e ela tem uma grande idéia.

– Então vamos comprar um relógio de bolso. Numa época, você usava um cebolão super charmoso.

– Não, por favor – suplico.

O fato é que não quero nada. Nenhum presente. Também não quero mudar de cidade. Não jogo na loteria. Não participo de bolão. Não desejo viver com outras mulheres, porque mais que elas me assanhem os instintos. Está bom assim. Estranhamente bom. Mas agora tenho um problema. Indicar um presente para que minha filha não se sinta excluída do clima de fim de ano, quando todos desejam alguma coisa, porque justamente o pai dela não vai querer algo?

– Já sei – digo.

– Deixe que eu adivinho. Você está querendo...

– Eu quero! – interrompo, indignado com o gerundismo que invadiu a língua portuguesa.

– Você quer algo mesmo?

– Só estava corrigindo você.

– Você quer um aparelho de som, não é? Para ouvir seus CDs – ela diz, completamente surda.

Taí um troço que eu de fato não quero. Tenho apenas uns poucos CDs: dois de Bach – The Goldberg Variations, tocado pelo louco do Glenn Gould, e outro, por Yo-Yo Ma. E os Quartetos de Cordas, do Villa-Lobos. Estou há anos ouvindo estes CDs no meu computador, e não sei quando terei tempo para ampliar o repertório. Para que então um aparelho de som?

– Na verdade, filha, eu gostaria de um globo para pôr na minha mesa. Sempre quis um globo, talvez porque tenha visto um no escritório de algum escritor famoso. Talvez porque quando era jovem a coisa de que mais gostava era olhar mapas de países distantes, sonhando viagens que acabei não fazendo. O fato é que realmente necessito de um globo desses que se vende em papelarias, só não me compre um daqueles que funcionam como abajur.

– Credo, pai, que falta de imaginação – ela faz cara de nojo.

– Sim, sou uma pessoa que gosta de ganhar coisas de papelaria.

– Para que um globo se pode usar o Google Earth?

– Meu computador não agüenta.

– Vamos então dar um computador novo para você – ela está feliz com a descoberta.

– Isso não. Não mesmo. Muito obrigado. É que tenho uma relação de cumplicidade com meu velho PC. Temo não conseguir escrever mais se arranjar outro.

– Mãe, o pai não tem mesmo jeito. Ele é um desmancha-prazeres – e sai irritada.

Como tudo vem para acrescentar, acho que as descomposturas que recebo de minha filha são fundamentais para minha formação. É bom saber que os filhos seguem o destino deles, afastando-se dos pais. Fico alegre também por isso.

O ano acabou. Não verei retrospectivas. Não vou reclamar do futuro. Não entrarei em pânico com o efeito estufa. Era para ser assim. Não existe nada errado com o mundo.

Tomado por este espírito conformador, quando alguém me pergunta como estou, sempre repondo irritantemente alegre:

– Estou no lucro, meu caro. No lucro!

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