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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Encontrei-me com Barbosa sob uma marquise do Centro. Tentávamos fugir de uma pancada de água que nos surpreendeu naquela tarde que ameaçara ser de sol. Trocamos um aperto de mão úmido, sem esconder certa repulsa. Nossos sapatos tinham se encharcado. As pernas da calça também.

– Que verão, hein – falei.

– Não suporto chuva – ele confessou.

E ficamos um minuto olhando a cidade turvada pela água.

– Você desceu pra praia? – perguntei.

Era uma pergunta sacana. Venho me divertindo com a frustração da temporada de mar. Temendo ficar ilhado num apartamento no litoral, optei por não descer, embora esteja esperando a primeira brecha de sol para a viagem litorânea.

– Desci e até que aproveitei um pouco. Na praia, saímos mesmo com chuva. O pior foi voltar pra casa e a chuva não parar.Não entendi o ponto de vista dele. Devo ter feito uma cara de estranhamento, pois Barbosa começou a explicar.

– Não me importo de perder o banho de sol na praia.

– Mas esses aguaceiros sempre são desagradáveis.

– Você faz outras coisas. Sai para comer. Visita loja. Joga baralho. Fuça na internet.

– Seria melhor uma caminhada no calçadão. Ver as mulheres...

– Claro, seria melhor. Mas quem desce pra praia em janeiro já espera chuva.

– Não tanta chuva assim.

– Enfim, fico sempre 15 dias. Suporto 15 dias de chuva. Não esses quase dois meses – o seu tom de voz ficou mais melancólico.

– Exagero. Não faz tanto tempo assim que está chovendo – mas ele já não me ouvia.

– Você liga a tevê e é noticiário de chuva. Então desliga e fica ouvindo o som dela no telhado, na janela de casa.

– Mas resta o shopping.

– Os shoppings nestas férias são acampamentos de desabrigados.

– Bom para o comércio.

Se queria provocar a ira dele, acho que consegui.

– Bom nada. Como essa chuvarada pode ter um lado bom? Veja as pessoas que perderam tudo. Você não sofre? Cadê a sua solidariedade?

Nessa hora, passou um grupo de jovens caminhando alegremente. Estavam com capas plásticas.

– As capas de chuva são a tendência neste verão – falei, para desarmar o Barbosa.

– Sabe. A chuva incomoda não por atrapalhar nossa diversão, nossas férias. O problema de tanta chuva assim é que ela embaça os vidros.

Soltei uma risada. Mas não era uma brincadeira dele. O homem falava sério e me olhou repreensivamente.

– Todos os vidros embaçados. Os vidros do carro. Os vidros de casa. Até mesmo as imensas vidraças dos shoppings.

– Se a gente for um pouco além – entrei na dele –, poderíamos dizer que o céu também é uma vidraça.

– Isso mesmo. Até o céu está embaçado.

E nós dois olhamos para os prédios que desapareciam sob a cortina espessa de água.

– Não suporto mais os vidros embaçados – ele meio que suspirou.

Ficamos em silêncio. Pensei ver uma lágrima em sua face. Mas poderia ser apenas resquícios da chuva. Barbosa é um homem imenso, forte, ombros largos, pelos no pescoço. Não daria um show de sentimentalismo.

– Você compreende?

– Compreendo – menti.

– Todos esses vidros embaçados há quase dois meses. A televisão e os jornais falando só de enchente, de chuva, de desabrigados. Se fosse apenas no período da praia, tudo bem. Mas o tempo todo. Os vidros do meu carro sempre turvos. Fujo para uma volta de carro e me sinto ainda mais preso. Sem horizonte. Sem ver o mundo. Preso em mim mesmo. A chuva me condena aos meus pensamentos, às minhas lembranças, essas coisas todas. Entendeu?

Sem esperar uma resposta, Barbosa saiu caminhando sob o mar vertical, os olhos voltados para o céu, como se tentasse se controlar.

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