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"Poucos desejam ouvir a leitura de nossos textos, o que seria muito melhor para todos, a maioria espera por uma história qualquer contada por um velho narrador. E eu, nem tão velho assim, me tornei este tipo de narrador. Valeu-me, neste novo ramo, a lembrança das histórias de minha avó paterna e por minha mãe."

A palavra mascate foi muito comum em meu vocabulário infantil. Víamos os turcos (qualquer árabe), munidos com suas malas mágicas, percorrendo a pé os sítios para vender roupas e quinquilharias. Muitos deles se estabeleceram no comércio, abrindo casas importantes na cidade. A obstinação desses homens em colocar o seu produto sempre foi uma coisa que admirei, embora não tenha tido sucesso, para desespero de meu padrasto, nas tentativas de vender salgadinhos, galinhas e frutas. Meu ramo não era o comércio, concluí, talvez meio precipitadamente, e procurei outras formas de sobrevivência.

Olho agora no dicionário a origem da palavra. Mascate é um topônimo: cidade da Arábia, de onde vieram comerciantes árabes no século XVII. Designa por extensão o mulato, o mestiço. E tem na nossa cultura uma conotação pejorativa. Da minha parte, se é que eu tenho parte em alguma coisa, sempre guardei um respeito muito grande pelos mascates, verdadeiros heróis civilizadores dos sertões brasileiros. Este respeito talvez se desse por eu ter me frustrado numa atividade muito similar, em que meu desempenho foi negado por todos:

– Esse rapazinho não serve mesmo para o comércio.

Vivi de outras coisas até uns 5 anos atrás. Mas com a publicação de meus livros de ficção, sempre de natureza autobiográfica, velada ou explícita, tenho sido chamado para palestras. No início, os assuntos eram mais técnicos, temas da área de literatura, na qual tenho uma formação meio obscurantista, com idéias polêmicas, que sempre me trazem novos desafetos mas também algumas adesões apaixonadas. Ou me amam ou me odeiam. Ou fervendo ou gelado. Tenho esta sina de despertar posturas extremistas.

Depois, comecei a ser convidado para falar de minha experiência de vida. Não queriam reflexões mais profundas, apenas narrativas autobiográficas, réplicas de meus livros. Poucos desejam ouvir a leitura de nossos textos, o que seria muito melhor para todos, a maioria espera por uma história qualquer contada por um velho narrador. E eu, nem tão velho assim, me tornei este tipo de narrador. Valeu-me, neste novo ramo, a lembrança das histórias de minha avó paterna e por minha mãe.

Minha avó relatava fatos sobre pessoas mortas havia décadas como se a conhecêssemos. Isso fazia com que elas tivessem uma presença viva em nossa infância. O segredo de uma narrativa é este poder de presentificação. O personagem deve se materializar para os ouvintes-leitores. Dona Carmen Escobar não nos explicava quem era fulano ou beltrano, apenas narrava os feitos desses desconhecidos como se todos fossem íntimos deles. E sem que isso fosse verdade, acabávamos sendo.

Já minha mãe, que sempre foi uma grande contadora de histórias, abusa dos detalhes. Não consegue contar uma ida ao mercado sem abrir parênteses e mais parênteses. É uma verdadeira aventura proustiana. E este é outro segredo da narrativa, que deve saber encadear fatos, criar suspense, alongar o tempo de espera para surpreender o leitor.

Foi com estas e outras heranças do universo literário da oralidade que me fiz primeiro ficcionista e agora mascate de mim mesmo. Contrariando os prognósticos mais pessimistas, acabei um vendedor. Não um grande vendedor, mas um mascatinho, que vai de porta em porta oferecendo sua mercadoria suspeita, de origem pobre e material ordinário. Qual é meu produto? Minha vidinha de ex-menino pobre, de leitor nascido numa família ágrafa e rural, de escritorzinho provinciano que não sabe usar direito os talheres, de discípulo irritadiço de grandes nomes da literatura etc. Produto não apenas precário como também inflacionado. Esta é a regra da atividade do mascate. Multiplicar por 3 ou por 4 o valor do produto, para obter lucro.

Este multiplicar é o componente ficcional da narrativa, é sua contribuição literária para o material recolhido nas experiências, é a mentira agregada à base vivida. Entre meus amigos mais íntimos – sim, eu os tenho! – e meus familiares, é notória minha compulsão para o exagero. Um episódio qualquer, que seria esquecido por quem não tivesse este desvio de comportamento, transforma-se em algo luminoso para mim. Mantenho a essência do fato, mas faço ajustes, modifico um pouco as palavras, agrego elementos novos, geralmente inventados, e aquela coisa tão ordinária ganha algum brilho. Brilho de bijuteria, é bem verdade, mas com uma pequena capacidade de sedução.

Eu edito ficcionalmente a vida. Faço dela uma narrativa. E assim já nem sei o que de fato vivi em carne e osso (e também em gordura, ai de mim!) e o que vivenciei em sonho. Minha vida pregressa é hoje um constructo, um material obtido artificialmente.

Não obstante este grau elevado de mentira que há no que conto e no que escrevo, persiste uma dolorosa verdade. E é este fundo verdadeiro que me salva de ser apenas um mitificador barato – aliás, tenho cada vez cobrado mais caro para dar estas palestras. E o que me assusta é que as pessoas (aquelas que me amam) mesmo assim querem me ouvir. Leram meus livros, mas precisam da dose adicional deste veneno que é a história-do-menino-pobre-que-se-tornou-escritor. No caso, eu mesmo. Ou ele, o outro – personagem que me fiz de mim mesmo.

www.miguelsanches.com.br

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