• Carregando...

Íamos dormir sãos, depois de rezar, ajoelhados ao pé da cama, um apressado Pai-Nosso e uma atropelada Ave-Maria, crentes de que no outro dia haveria muito sol, brincadeiras, talvez até algum picolé comprado do sorveteiro da rua, um velhinho magro e arcado sobre um carrinho de material acrílico, pintado na famosa cor azul-calcinha. No interior empoeirado, nos anos 70, as moças usavam calcinhas azuis, mais práticas do que as brancas e não tão ousadas quanto as pretas e vermelhas. Como eu dizia, antes de me lembrar do azul e das calcinhas das meninas de minha infância, pensamentos sempre perturbadores, mesmo para um quarentão como o acima assinado, íamos dormir na esperança de reencontrar a luz da manhã, mas um acidente qualquer nos deixava na escuridão. Tentávamos abrir os olhos e não conseguíamos. A primeira vez que isso me aconteceu, entrei em pânico. Eu sempre tive medo da noite, e observava os cegos com profunda piedade.

Gritei.

A mãe veio correndo.

Sentado na cama, eu só percebia uma vaga claridade diante de minhas pálpebras. Não podia abri-las.

"Estou cego."

Ela riu, e me chamou de exagerado.

"É apenas dor-d’olhos."

Fiquei mais apavorado:

"Mata?"

Ainda rindo, depois contaria isso para as amigas, ela me segurou pela mão e me conduziu pelo corredor, como a um ceguinho, até o banheiro, fazendo-me molhar várias vezes os olhos, para retirar a camada de remela endurecida, fruto da infecção. Saíam pequenos pedaços de um material firme, doía quando era preciso puxar a craca colada nos cílios, mas aos poucos foi voltando a visão. Os olhos ardiam, estavam vermelhos, mas já podiam me revelar o mundo.

A mãe saiu pelos quintais vizinhos e pelas chácaras à procura da planta salvadora. Voltou com um ramo de arruda, cujo cheiro recendia por toda a casa, insuportável. Ferveu as folhas, deixou esfriar e me lavou os olhos várias vezes com aquele líquido, e tudo voltou ao normal.

Depois daquela vez, todos os anos da infância eu tinha dor-d’olhos. Mas já não me desesperava, apenas avisava a mãe e ficava esperando o cheiro invasor da arruda.

Recentemente, perguntei para ela quando a dor-d’olhos nos atacava. Eu tinha a sensação de que durante o inverno meus olhos estavam sempre inflamados.

"Na época do milho verde", ela respondeu.

Ficamos escutando o silêncio. Arrisquei:

"Quando é mesmo a época do milho verde?", há muito deixei a lavoura e minha mãe também se afastou da vida na roça.

"Não me lembro mais", ela disse, "acho que é agora, no verão".

Não temos mais um calendário voltado para as colheitas porque passamos a encontrar os produtos na feira durante o ano todo. Milagre da lavoura irrigada. Assim, nos mercados, sempre há milho verde e pamonhas, dos quais fujo, em nome de uma memória degustativa que não quero perder.

Mudamos de assunto, a mãe falou do chá de arruda. Servia também para as mulheres paridas.

"Elas bebiam?"

Minha mãe nunca conversou sobre nenhum tema sexual com os filhos, por isso tentou dar voltas e disse que era o chá das mulheres grávidas.

"Servia para quê?"

"Ora, para aquilo".

"Para terem filhos saudáveis?"

"É... Não, não era para isso".

"Então qual a função do chá?"

"As mulheres tinham partos normais. Então tomavam banho com ele. Você não entende?"

"Não, não entendo".

"Para que aquilo que tinha sido rasgado cicatrizasse logo".

Novo silêncio. Ela, com vergonha do assunto. Eu pensando no sofrimento daquelas mulheres de outrora, que pariam em sítios distantes, assistidas apenas por outras mulheres.

A mãe de minha mãe tinha morrido logo depois do segundo parto. Ninguém nunca explicou direito em quais condições. Por preconceito, com certeza. Talvez o chá de arruda não tivesse surtido efeito. Talvez fosse algo mais grave. Toda a história de minha família é marcada por tabus lingüísticos.

"E a dor-d’olhos, mãe?"

"O que tem?"

"Ninguém mais sofre desta doença antigamente tão comum?"

"Nunca mais soube de um caso."

Desliguei o telefone, sentindo uma ardência nos olhos. Seria possível ter dor-d’olhos agora? Não estávamos na época do milho verde? Onde eu encontraria um pé de arruda para o banho salvador?

Fui ao dicionário e vi que dor-d’olhos não passava de uma conjuntivite supurada. Por precaução, passei na farmácia e comprei um antibiótico. Mas ainda não tive oportunidade de usar.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]