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Eu estava acostumado a não ter mãe. Mais de 25 anos longe dela, fomos cultivando um processo de afastamento contínuo: ela se ligando mais às memórias da juventude, vivendo em uma imensa casa sem filhos; eu construindo um espaço próprio, com filhos e livros. No começo, quando não tínhamos ainda as crianças, e quando os vínculos com a cidade onde gastamos a infância (esta infância que nunca se deixa gastar totalmente), íamos visitá-la todo mês. Era bom rever a casa, os móveis que nos acompanharam, provar de comidas que tinham um sabor ancestral. Aquele era o meu mundo. No centro dele, a mãe.

Com o nascimento de minha filha, as viagens se espaçaram. Adotei como minha outra cidade – outras cidades. Restaram as ligações telefônicas todos os domingos de manhã, quando falamos dos assuntos vagos. Começo sempre com a mesma pergunta:

– Quem morreu esta semana, mãe?

E ela me conta de mortos que desconheço ou de amigos, e assim vamos sendo enterrados na cidade que não nos deixa, embora há muito nós a tenhamos deixado. Uma cidade tão profundamente arraigada em nós é assim: continua fiel mesmo quando nos esquecemos dela. E seu chão generoso nos aguarda sem a menor pressa, pois sabe que um dia voltaremos para o repouso – só admito ser enterrado na cidade que me apresentou o mundo, para lá me despedir dele.

Hoje, minha mãe é a mais forte ligação com aquele universo. Quando o visito, estou visitando minha mãe. O curioso é que ela não é nascida na cidade; veio de outras experiências, mas mantém, talvez em nome dos filhos, um velho vínculo. Mesmo longe, ainda estou lá, porque algo me puxa para aquele centro.

Assim que chego àquela latitude, e vejo as ruas onde em outra dimensão ainda continuo vagando, e sinto o apelo das casas que conheci por dentro, e que hoje são fachadas, vem-me um sentimento estrangeiro. Sou o imigrante mesmo em minha pátria mais íntima. Então me exilo na casa de minha mãe – que agora mora em outro endereço, o que só aumenta o meu deslocamento. Logo que posso, vou embora e crio pretextos para não retornar. Estou com muito trabalho. O trânsito nas rodovias durante os feriados é terrível. A sua neta tem uma festa. Mas reincido na viagem ao menos uma vez por ano, nunca ficando mais do que três dias.

É bem mais fácil visitar uma cidade pela memória. Dessa forma, fui me acostumando a não ter mãe. Ou melhor, a ter uma mãe feita de distância. De vez em quando, minha filha reclamava que gostaria de poder tomar café à tarde com a avó. Ou se reunir com as amigas na casa dela. Participar de almoços de domingo com os familiares. Eu lhe tirava essas ideias levando-a ao shopping ou a um restaurante novo. Os outros co­­mem na companhia do clã. Nós, em restaurantes. É a mesma coisa. (Claro que não é, mas todos fingíamos acreditar nisso.)

Com o nascimento temporão de meu filho, intensificamos a solidão. Uns poucos parentes nos visitam, meus irmãos sequer o conhecem ainda, e fazemos raras viagens. Tudo mais difícil agora. O carro tem um porta-malas pequeno. É cansativo arrastar um bebê por centenas de quilômetros. E outras desculpas.

Vamos fugindo daquela cidade. Mas a cidade nunca desiste de seus ex-moradores. Minha mãe, com mais de 70 anos, viajou sozinha a noite toda, e chegou numa madrugada dessas na rodoviária. Fui buscá-la, fiquei algumas horas e logo parti para o serviço. Trabalhei demais nos últimos dias, não indo almoçar em casa, ou ficando fora até tarde. A visita de minha mãe não tinha sido programada, então não pude me livrar das obrigações assumidas. Para complicar, minha mulher e minha filha tiveram que se ausentar durante um dia, e minha mãe ficou com o neto.

No final de semana, a coisa toda se revelou. Meu filho não quer se afastar da avó. Exige a presença dela em todos os momentos. Agarra-se à sua perna se ela quer sair. Ri das brincadeiras que ela faz com ele, como o pinhé-pinhé, esticando a pele flácida da mão. Sentam-se no tapete do quarto para brincar com carrinhos. Deitam-se juntos no sofá.

Lembro-me que, quando criança, eu entrava em desespero com a possibilidade de não encontrar minha mãe quando retornava da escola. Ela sempre gostou de dormir à tarde e de ficar com a casa trancada. A desculpa era a poeira vermelha que vinha da rua. Mas no fundo queria descansar do mundo. Eu mal entrava pela porta da sala, vendo a escuridão daquele útero, as cortinas todas fechadas, e gritava por minha mãe. Ela respondia lá do quarto e eu então podia guardar a bolsa. Ia para a cozinha e logo ela aparecia para preparar alguma de suas comidas rústicas, que remontavam à sua infância. Depois chegavam meus irmãos, que não aceleravam o retorno.

Quando fui para o colégio interno, escolhi o quarto que dava para os lados da cidade onde minha mãe me aguardava todo fim de semana. Após algumas tentativas frustradas, consegui partir.

Mas meu filho agora restaura os vínculos. Ele me faz me acostumar de novo com o fato de ter mãe. Andamos de carro pela cidade que me acolheu, e vamos vendo coisas. Ao passar em frente do belo cemitério, com túmulos deslumbrantes, convido minha mãe para fazer uma visita. Gostamos de cemitérios, de falar de mortos, de olhar fotos e ler lápides. Estranhamente, minha mãe se recusa a parar. "O que vou querer fazer neste cemitério?", ela diz. E todos rimos.

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