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Não devo reclamar mais, é o que dizem por aí os mestres da felicidade em dez lições. Eu ia escrever que tive uma semana pesada, cujo resultado é uma gripe, por conta do organismo fragilizado. Mas como não posso reclamar, digo apenas que tive o privilégio de ter uma semana cheia. E que a gripe é algo positivo pois me obriga a descansar um pouco e receber a atenção da família. E tenho a sorte de isso estar constipado no fim de semana.

Transparente demais, não sei disfarçar; quando vejo uma mulher que me chama a atenção, fico incomodado, mexo-me, foco a parte de seu corpo que mais me atrai e sofro todas as perturbações possíveis. Quando me deprimo, também é fácil descobrir. Baixo o tom de voz – eu que falo alto – e fico com a testa franzida. Sou uma pessoa que se revela – um péssimo ator, portanto.

Se algo me entusiasma, os olhos ganham brilho e falo mais alto ainda – como se isso fosse possível –, incomodando as pessoas com meus planos. Estatisticamente, apenas 2% deles acabam realizados, o que faz com que as pessoas não me levem a sério. Acusam-me sempre de exagerado. São as seqüelas da alegria – planos que eram tão concretos naquela hora e que depois foram esquecidos.

Mas nada me revela mais do que minha mesa de trabalho. Ela me espelha, não que seja de vidro – aliás, detesto mesas de vidro –, e sim porque o estado de minha mesa é um termômetro.

Vou mostrá-la agora.

Estive procurando um disquete em que havia um texto qualquer e espalhei todos no tampo preto. Isso deve ter sido na terça ou na quarta-feira. E a montanha de disquetes continua aqui, ao lado do teclado do computador, atrapalhando o braço direito na hora de digitar. Sobre ele estão jogadas algumas folhas com um calendário de compromissos já devidamente vencidos. A imagem em gesso de São Jorge Amado continua me olhando, num dos cantos da mesa. Num momento de ira, dei um tapa em várias coisas, atirando a estatueta na parede, e ela não sofreu a menor avaria. Sinal de que esse santo protetor dos escritores que querem vender muito é forte mesmo. Não pega nada.

No lado esquerdo do teclado estão dois livros de um autor – não divulgo o nome para não fazer propaganda num espaço que não tem esse fim. Sobre eles, um rolo, pelo meio, de papel higiênico. É que estou com tanta coriza que se acabaram as toalhas de papel e me valho do bom e poroso papel higiênico, jogando os chumaços pesados na lixeira. Na frente do teclado, tenho cartões com calendário, onde vou riscando os dias vividos, para não me afastar muito.

Como a mesa é em forma de L, a maior parte fica à direita do computador, onde estão vários livros novos. Comprei nesta semana 10 livros. É que quanto menos tempo tenho, mais me obrigo a passar pelas livrarias. Isso é muito comum entre as pessoas que gostam de literatura e acrescenta um dado novo sobre o mercado editorial: compraremos mais livros quanto menos tempo tivermos para lê-los. A solução para as pequenas tiragens é fazer com que tenhamos cada vez menos horário livre e mais dinheiro.

Os livros, logicamente, não estão organizados, mas largados. Há também revistas e jornais empilhados precariamente. Quando sobra tempo, folheio alguns exemplares, nunca na ordem cronológica, leio meia dúzia de linhas e vou jogando as folhas no chão.

Deu para ver que estou vivendo no meio de um ninho de papéis. Há anotações para aulas e crônicas, documentos, contratos de editora, cadernos, cadernetas e um relógio velho dentro de um cinzeiro – não fumo e não recebo tabagistas, daí usar o cinzeiro para guardar moedas e outras quinquilharias.

Num copo, lápis, muitos lápis, apenas uma caneta, uma pequena chave de fenda, régua, marcadores de livro. Um deles, da feira de livro de Madri, é ameaçador: "Leer te da más". Outro com o mapa do Chile. Vejam que ando meio internacional ultimamente.

Das coisas que pousam na mesa por acaso e que não saem, a mais querida é um quebra-cabeça em forma de cartão de "O quarto estado", de Da Volpedo, imagem que usei na capa de um de meus livros. Este cartão minha editora me trouxe da Itália, como uma lembrança. Não sei o que fazer com ele, é mais um amuleto – como a estatueta de São Jorge Amado. E por falar em amuletos, fiz um descanso de tela do meu computador com o título de meu próximo romance – é isso mesmo, estou trabalhando num novo romance e ando divulgando que venderá milhões de exemplares, tudo para atrair bons resultados.

Envelopes rasgados descansam no meio deste pandemônio. Acho que fiquei devendo algumas respostas aos remetentes. E muitas a mim mesmo.

Entre as coisas improváveis que habitam o planalto da mesa está um caderno de caligrafia. Minha letra é muito feia e não desejo melhorá-la porque quase já não uso este processo de escrita, mas não resisto a um caderno de caligrafia.

Um caderno sem pautas, de capa dura, que comprei na livraria Ateneo, em Buenos Aires, permanece lacrado há mais de 6 meses. E o mais grave: há um pacote de livro que chegou pelo correio e que não abri. Nunca isso aconteceu antes. Sempre ataco afoitamente essas correspondências. E ali está ele, bojudo, com o nome da editora, descansando faz mais de 3 dias.

Dentro do computador, o mesmo CD de sempre – Variações Goldberg – não, não me canso de ouvir Glenn Gould tocar Bach.

Navega neste mar de detritos um desenho que minha filha pintou quando tinha uns 5 anos. É um barquinho rosa, com velas pequenas – por isso talvez não saia do lugar.

O que fez com que tudo isso fosse reunido na minha mesa? Parece que uma enchente recolheu coisas tão diversas, dando a impressão de um caos. As águas dessa enchente chamam-se tempo. Aliás, falta de. Minha mesa em desordem mostra que não estou muito bem. Era para ter guardado essas coisas em determinados momentos, mas estive correndo tanto nos últimos dias que elas foram se acumulando neste que é o meu mais freqüente paradeiro – a mesa com o computador.

Minha semana foi de fato terrível. Mas para fins benéficos, devo dizer que ela foi ótima. E terei o final de semana inteiro para organizar tudo. E talvez até consiga cortar as unhas dos pés – porque as das mãos eu as rôo.

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