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"Vão dizer que hoje, com os blogues, não precisamos mais de diários. Justamente por conta do blogue, da internet, que afrouxou nossa relação com a escrita à mão, volto ao diário. É preciso reconquistar a intimidade com a caneta, com o caderno pautado, com o silêncio da escrita manual. Estou empenhado nisso, sem renunciar, é claro, às facilidades da escrita digital."

Dedicando às livrarias de shopping a tarde de sábado, passei em revista os lançamentos nacionais e estrangeiros. Comprei apenas dois livros, de um autor que já conheço e de outro que nunca li. Não sei quando terei tempo para estes livros, mas os quero comigo no caso de uma emergência. Em determinadas horas, por maior que seja a biblioteca, nos falta sempre algo para ler. Como estratégia, mantenho um estoque de livros que podem ser úteis. Talvez no meio de uma noite de insônia, quando tudo perder o sentido, quando me der vontade de me matar, eu encontre em um deles a palavra amiga. Talvez eu até ria de um lance ou me comova com um drama qualquer. Os livros, mesmo não lidos, cumprem esta função apaziguadora.

Voltei da ronda às livrarias com os volumes de ficção – um romance e uma coletânea de contos – e também com dois cadernos da Tilibra, da série Opus, 100 folhas, com pauta, formato 190 por 248 centímetros. Tenho sempre meus cadernos de anotação, blocos, papéis avulsos, essa parafernália toda do escritor. Estou atento para que não escape uma idéia, por mais irrelevante que seja. Quem escreve crônicas semanais não pode desperdiçar nada. Esses cadernos, no entanto, não servirão para as anotações de futuros textos. Eu os destino a fins mais nobres. É que faz perto de um ano que mantenho um diário, vá lá, um semanário, pois minhas anotações são ralas. E estou para completar o primeiro caderno, o que me obrigou a comprar mais dois.

Não faço mais crítica, tenho muitas amizades no meio literário para ser um crítico minimamente honesto, mas continuo lendo lançamentos. Então deixo tudo anotado nos diários. Escrevo o que penso sobre obras e pessoas, sobre encontros, familiares e amigos, sobre mim mesmo. Textos cruéis, que vêem mais o lado sórdido da existência.

O caderno fica sobre a mesa, livre para qualquer um ler, mas pedi aos parentes que não mexessem nesses campos férteis de ressentimentos e incompreensão. Sim, sou impiedoso nas anotações, mas esta impiedade eu a exerço primeiro contra mim – e isto talvez sirva de atenuante. Para que este festival de censuras? Para deixar um depoimento sincero, exageradamente sincero, sobre livros e pessoas. Não são diários publicáveis, destes que formam a imagem erudita do escritor, mas textos que denunciam minha fragilidade, minhas ações interesseiras, minha incapacidade de compreender o outro. Tenho uma vocação para o confronto, e nunca a exerci de forma tão acentuada como neste formato.

O fato é que, esperando um ano de 2008 com muito tempo para a literatura, comprei dois cadernos que agora me solicitam.

Vão dizer que hoje, com os blogues, não precisamos mais de diários. Justamente por conta do blogue, da internet, que afrouxou nossa relação com a escrita à mão, volto ao diário. É preciso reconquistar a intimidade com a caneta, com o caderno pautado, com o silêncio da escrita manual. Estou empenhado nisso, sem renunciar, é claro, às facilidades da escrita digital.

Não sei se terei um 2008 que corresponda à minha expectativa.

Seguindo as avaliações que venho fazendo, preparo uma antologia dos melhores artigos de crítica. Somente quando já não praticamos um gênero surge esta vontade de trabalhar com o material antigo. De modo que hoje, quando sou um resenhista esporádico, chafurdo no espólio do crítico. Eu precisava me confrontar com os mais de 10 anos desta atividade semanal. Também organizo um volume de meus ensaios mais acadêmicos, tudo dentro deste espírito testamentário. Quem ordena o passado nele já não se reconhece.

O que mais revela este clima de mudança do período é a compra do calendário para o ano seguinte – uma compra cheia de simbolismo.

Na ida à livraria, no sábado, escolhi o calendário Taschen que me acompanhará o ano todo. Havia poucas opções, mas fiquei com o dos auto-retratos de Frida Kahlo. O que mais me fascina é o caráter autobiográfico de trabalho dela. Praticamente, só pintou a si mesma e a seus dramas. Suas doenças lhe deram uma visão lúgubre da existência, que para ela foi dor, sofrimento, limitação. Mas foi também ascese. Os auto-retratos, por isso, não revelam apenas a mulher Frida Kahlo, mas a falência do corpo.

As telas são acrescidas de legendas – e isso também é fascinante. Ela misturava artes plásticas e escrita, vinculando de maneira mais direta ainda o quadro a um dado biográfico. Sua letra escolar, que cria um contraste com as imagens fortes, é mais um apelo para este meu retorno tardio às anotações em caderno.

É na companhia de Frida Kahlo que pretendo passar o ano de 2008 – já pendurei na parede em que fica a minha mesa de trabalho este calendário-agenda, com os seus quadriculados para cada dia do mês. Há um recado velado para mim mesmo na opção por esta artista. Que eu não desperdice meus dias com coisas fúteis, que eu mantenha a concepção trágica da existência, que continue me dedicando ao autobiográfico.

Na parede da biblioteca, Frida Kahlo me fitará com seu olhar duro, de sobrancelhas grossas e tensas, me desafiando a preencher os dias vazios com algo minimamente durável.

www.miguelsanches.com.br

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