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As chuvas das últimas semanas fizeram com que eu me lembrasse de um episódio da época em que estudei como interno em um colégio agrícola. Assim que ingressávamos na vida gregária, dominada apenas por rapazes, sofríamos imediatamente um batismo. Ninguém nunca saía ileso dessa prática, e alguns de nós tiveram a sua identidade modificada várias vezes.

Mas certos apelidos pegavam para sempre. Um rapaz de traços finos e roupas idem, cujo nome esqueci completamente, recebeu o seu vulgo logo no primeiro dia de aula. Era começo de ano, fazia muito calor e a sala em que estudávamos carecia de ventilação. O rapaz pediu para ir ao banheiro quando o professor ainda apresentava o conteúdo da disciplina. Depois de receber um olhar duro, teve autorizada a saída emergencial.

Como as dependências didáticas eram coladas à parte habitacional do internato, nos banheiros ficavam também os chuveiros. Passados uns minutos, o rapaz voltou com o cabelo, as roupas e os calçados totalmente encharcados. Alguém perguntou, irônico:

– Ei, molhado, o que aconteceu? Caiu dentro do vaso?

E desde aquele momento ele passou a se chamar apenas Molhado. E fez de tudo para corresponder ao apelido. Assim que nos levantávamos, depois de as luzes dos dormitórios serem acesas pelo inspetor – era ele quem as apagava às 22 horas e as acendia às 6 – íamos para o banheiro coletivo, onde fazíamos nossa higiene. Seguíamos ainda de pijama. Molhado dormia com a roupa que usava durante toda a semana e ficava sob o chuveiro por um bom tempo já de manhã. Era pingando, porque ele nunca se enxugava (não tinha nem toalha), que ele ia para o refeitório, e depois para as aulas. No intervalo, outro banho. Mais um na hora do almoço, e também no meio da tarde e outro antes de dormir. Nas noites de muito calor, ele saía no escuro e ia até uma torneira do jardim e se molhava longamente.

Quem mora no meio de muitas pessoas se acostuma a toda sorte de esquisitice. Logo, era uma tradição encontrar esse estudante para quem só havia dias de chuva.

E as lendas foram surgindo: 1) Como tem vergonha de mostrar o corpo [os chuveiros eram abertos e coletivos], banha-se com roupa e tudo. 2) Havia usado muita droga e ficara assim perdidão. 3) Sofre de um problema de pele muito raro, que deixa o corpo queimando, por isso se refresca sempre que pode.

Essas e outras hipóteses isolaram Molhado ainda mais.

E ele tinha ainda outras dificuldades. Não conseguia, por exemplo, tomar nota das aulas. Os cadernos estavam sempre molhados, e as folhas empenavam. Mesmo os seus livros se tornavam imprestáveis por causa da umidade, que acabava lacrando as folhas. Ninguém queria dormir no beliche em que ele ocupava a parte de cima. Todos diziam que ele fazia suas necessidades na calça, e de fato não o víamos se aliviando nem no banheiro nem no mato.

Talvez por essa última suspeita, um grupo decidiu aplicar um corretivo. Quatro colegas pegaram Molhado pelas pernas e pelos braços e o jogaram no tanque ao lado da horta. Ele quase se afogou. Não sabia nadar. Teve de ser tirado com a ajuda de um bambu.

Quando Molhado saiu da água, tinha um sorriso de alegria. Talvez por isso, ou por temer que ele se afogasse, nunca mais ninguém o jogou no tanque.

Chegou o inverno e ele continuou com seus hábitos extravagantes. Tremia de frio, mesmo usando grossos casacos, mas não abria mão dos muitos banhos em que não tirava nem o gorro da cabeça. Não concluiu o ano, tendo ido embora sem se despedir da turma.

Quando quase já não nos lembrávamos dele, durante uma aula em que alguém falava da proporcionalidade entre o corpo humano e o planeta Terra, ambos tinham aproximadamente 75% de água, eu comentei:

– Menos o Molhado, que tem mais de 95%.

Todos riram.

No final da aula, a orientadora pedagógica me chamou na sala dela:

– Queria que você parasse com as gracinhas sobre Fulano. Ele desistiu do colégio porque morria de medo de que alguém ateasse fogo nas roupas dele. Não podia ver ninguém acendendo um fósforo.

Muito depois, soube de pessoas que sofreram autocombustão. Elas se incendiavam sozinhas. Porque além de água também somos gordura que queima com grande facilidade.

* A colunista Marleth Silva está de férias e retorna no dia 5 de fevereiro.

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