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O diplomata irlandês Casement é protagonista do romance de Vargas Llosa | Divulgação
O diplomata irlandês Casement é protagonista do romance de Vargas Llosa| Foto: Divulgação

Um herói a posteriori, assim poderia ser definido sir Roger Casement (1864-1916), que, no seu tempo, foi o irlandês mais conhecido internacionalmente. Morou na África e no Brasil, tendo percorrido o mundo na condição de diplomata britânico. Mas o contato com a realidade sofrida das colônias, exploradas pelas potências europeias, o levou a um aguçado sentimento nacionalista. Depois de ter sido feito Cavaleiro, ele abandona o posto diplomático para se dedicar à luta pela libertação da Irlanda, sendo executado como traidor do império.

É a história deste homem que Mario Vargas Llosa retrata em O Sonho do Celta. O interesse que o peruano demonstra por esta figura tem motivação identitária: Casement denunciou os abusos cometidos em Iquitos, no Peru, pela indústria da borracha, que escravizava os índios de Putumayo. Esta passagem foi tratada no romance de maneira extensiva, embora sir Roger tenha dedicado apenas um ano de sua vida ao Peru, e duas décadas ao Congo. Casement é visto principalmente a partir de sua oposição aos desmandos de feitores amazônicos, descritos com grande riqueza de detalhes. Tanto na parte dedicada ao Congo quanto à Irlanda, a narrativa é mais rápida. Aqui, o romancista vê a região de fora, enquanto na parte amazônica ele a vê de dentro.

Roger Casement poderia ter sido um herói de primeira hora, mas sofreu um processo de difamação. Ele deixara uns diários secretos em que narrava cruamente casos homossexuais, escancarados depois de sua prisão. Não há certeza quanto à veracidade dos episódios, mas eles foram fortes o suficiente para cobrir de opróbrio o nome do irlandês. Como um defensor do humanismo e da liberdade dos oprimidos poderia explorá-los sexualmente?

Somente por manter esses encontros é que Roger Casement desenvolveu uma compreensão afetiva do drama dos povos periféricos, entre eles a sua Irlanda natal. O contato com o outro o leva a um eu profundo. Assim como Walt Whitman, que se misturou amorosamente com as classes mais pobres, tirando deste universo a força de uma poesia cívica, Casement mudou sua visão de mundo, tornando-se um anticolonialista, a partir da entrega a negros, mulatos e indígenas nos seus períodos de permanência em latitudes estrangeiras, onde ele experimentava uma liberdade sexual impossível na civilização. Aquilo que o modificou, tornando-o um herói, também enlameou sua reputação. Ele só pôde ser compreendido plenamente depois da revolução sexual, que fez dele um duplo mártir, da causa irlandesa e de sua orientação erótica. O livro passa um tanto ao largo desta questão, talvez por ter pouco de romance e mais de ensaio biográfico.

Numa ficção, pode-se narrar uma história resumindo-a explicativamente ou encenando-a diante do leitor, ou ainda misturando as duas formas. Vargas Llosa prefere a primeira estratégia. Esta escolha faz com que toda cena coloque em ação uma voz que conta e comenta o que ocorreu. O narrador em terceira pessoa é um explicador repetitivo, os diálogos soam artificiais e a narrativa se torna monocórdia.

Há também uma linha analítico-evolutiva da personalidade que se quer coerente. O romancista diz, no final, que as cenas pornográficas dos diários poderiam ser um relato ficcional, o que estabilizaria, dentro de um modelo de herói, a figura de Roger Casement. Isso parece tolher as possibilidades romanescas de uma trajetória tão rica. Vargas Llosa minimiza a inquietação sexual, centro das ações políticas de sir Roger, perdendo assim a oportunidade de mostrá-lo nas suas complexidades e incoerências. Ficamos conhecendo apenas a verdade desta voz narrativa que organiza uma vida, tal como uma biografia convencional. A função da literatura, no entanto, é a de desorganizar vidas.

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Serviço:

O Sonho do Celta, de Mario Vargas Llosa. Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman. Alfaguara, 390 págs. R$ 47,90. Romance.

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