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Charles Bukowski e Georgia Peckham-Krellner, uma de suas “musas” | Joan Levine Gannji / Divulgação
Charles Bukowski e Georgia Peckham-Krellner, uma de suas “musas”| Foto: Joan Levine Gannji / Divulgação

Da abstinência sexual ao excesso, eis a trajetória narrativa de Mulheres, um clássico de Charles Bukowski (1920–1994) do final dos anos 70. À primeira vista, é um romance monotemático, sobre as aventuras libidinosas de um escritor que não se cansa de beber e de sair com fêmeas entregues ao álcool e às drogas, na Los Angeles dos anos loucos. As cenas de sexo se sucedem repetitivamente ao longo do livro, o que pode levar o leitor menos atento a achar que este é apenas um livro de pornografias.

Mas onde a literatura se manifesta nunca há pornografia, e sim dramas humanos. Ao fazer suas conquistas amorosas, Henry Chinaski, o Hank, alter ego de Bukowski, se remunera afetivamente pelo longo período de desprezo. Quase sexagenário, com uma feição horrível, barrigona flácida de cerveja, cicatrizes por todo o corpo, vergando roupas estropiadas, sempre de ressaca, vomitando a todo o momento, morador de um pardieiro, ele encontra em jovens que o procuram por causa de sua literatura uma paga por todas as privações.

Em vários momentos, ele se lembra de seu passado: a infância pobre e sem carinho; as acnes que o tornaram um adolescente repugnante; a falta de namoro por conta de seu aspecto e da pobreza; os trabalhos sórdidos nos lugares mais brutais; os anos como funcionário nos Correios; o confronto com os animais da noite; a falta crônica de dinheiro; a solidão de quem mora em hotéis e cortiços etc. Tudo isso é um passado recente e muito doloroso para o narrador que começa a fazer sucesso com uma literatura de embate com a vida.

A ação do romance ocorre quando Hank, depois de abandonar a estabilidade do emprego nos Correios, vive de seus livros e de leituras ébrias de poesia em universidades e boates. Há um orgulho imenso em ser um profissional da escrita. Visitando o prédio de uma das mulheres com quem sai, vê as caixas de correspondência. Faz um co­­mentário marginal, mas de grande força humana: "Passando pelo saguão do prédio, reconheci as caixas do correio. Tinha deixado muita correspondên-cia ali quando eu era carteiro" (p.38). No final do romance, no hipódromo, ao lado de uma jovem, ele encontra um amigo do Correio que pergunta do que ele está vivendo. E ele faz, no ar, o gesto de quem datilografa:

– Quer dizer que você trabalha de datilógrafo numa firma?

– Não, eu escrevo.

– Escreve o quê?

– Poemas, contos, romances. Me pagam para isso.

Ele me deu uma olhada. Aí, fez meia volta e se mandou." (p.309)

Bebendo à tarde e à noite, acordando ao meio dia, viajando para as leituras, sempre na companhia de mulheres diferentes, ele vive de uma vez tudo que não pôde nas décadas de miséria. Uma das cenas recorrentes é ele abrindo a sua própria caixa de correio – e há um ar triunfal nisso – para pegar as correspondências, que são de duas naturezas: convites para leituras de poesia ou cartas de fãs se oferecendo para transar com ele. Ele conseguiu passar para o outro lado.

Por isso não desperdiça ne­­nhuma oportunidade de fazer sexo ou de beber. Joga nos cavalos e vê lutas de boxe, além de arrumar encrencas com todo mundo. É isso que alimenta sua escrita autobiográfica e não a dedicação comportada aos estudos: "Assistir a lutas de boxe ensina algumas coisas sobre o ato de escrever, a mesma coisa acontece com as corridas de cavalo" (p.109). Assim, a sua literatura nasce deste conhecimento da vida nas suas manifestações mais intensas, na sua luta contra a morte. Esta luta agora não é mais nos confrontos com marginais em bares, e sim solitária. Ele se olha no espelho e vê a morte. Continua lutando ao se recusar a parar de beber e ao conquistar garotas mais jovens. Mas em pouco tempo, zera esse passado de carência de sexo e se liga a uma mulher decente. Apesar de toda a bandalheira, Mulheres é um romance de amor; um amor à maneira do velho Hank.

Serviço

Mulheres, de Charles Bukowski. Tradução de Reinaldo Moraes. L&PM, 230 págs., R$ 17. Romance.

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