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Há quem tenha inveja da mulher bonita do amigo ou do vizinho, ou apenas do carro importado dele, acreditando que com um carro assim também seria amado por fêmea daquele naipe. A maioria diz que não tem inveja, apenas admiração, que é um sentimento bom e recomendável. Confesso, tenho sim inveja.

Mas invejo uma coisa que só os avoados conhecem o valor. Invejo as pessoas que sabem chegar com facilidade aos endereços. Invejo, por exemplo, minha mulher, que dirige há bem menos tempo do que eu e que, irritantemente, sabe os mais inacreditáveis caminhos nos lugares em que moramos.

Como bom invejoso, torço para que ela se perca. O que nunca acontece. Uma mocinha de Peabiru simplesmente NÃO PODE se locomover com tanta facilidade em cidades grandes. Criei então uma teoria mística: ela é a reencarnação de um motorista de táxi.

Só há um problema nesta tese. O motorista de táxi viveu numa cidade muito menor, com poucas ruas e trânsito tranqüilo. E ela se locomove pelas periferias mais improváveis. Talvez tenha herdado apenas a alma de motorista.

Quando estou apressado, conduzo o carro, por falta de senso de direção, a regiões remotas. E sempre aproveito esses momentos para testá-la.

– Aposto que você nunca esteve aqui.

Ela invariavelmente me responde que ali perto mora uma conhecida, ou que já esteve numa loja da região anos atrás, ou que era a passagem para a casa daquela mulher que fazia massagens etc. Humilhado, ainda tenho que lhe pedir ajuda para deixar o lugar.

Quando me perco, e sempre me perco, fico muito tempo dando voltas, andando até encontrar um ponto de referência e reconhecer um itinerário tradicional. Assim, para ir a um bairro pouco distante de onde estou, volto ao centro, seguindo para a região de onde vim, raramente com sucesso.

– Por que você não pára e pergunta a alguém? – ela me diz.

E como vou seguir até a rua tal, virar na avenida não sei o quê, ou contornar a praça fulano de tal se não guardo os nomes de ruas e logradouros e não consigo me localizar no mapa verbal que as pessoas constroem? Prefiro ficar perdido por conta própria. Sei que é orgulho demais, mas fazer o quê?

Para meu azar, as cidades são nomeadas de forma perversa. Aqui em Ponta Grossa, já morei numa rua que se chama João Antonio. Apesar de um nome simples, nunca consegui memorizá-lo corretamente. É que a rua paralela se chama Antônio João. E se alguém perguntava meu endereço, eu me confundia. Foi quando comecei a usar cartões de visitas, evitando apuros como esperar por um amigo que percorreu a rua vizinha me procurando e foi embora chateado com a molecagem de eu dar um número fictício. Eu me acostumei tanto com os cartões que quando alguém me pergunta onde moro, peço uns instantes, retiro o cartão e leio o endereço para o interlocutor. (Para escrever este parágrafo, consultei meus arquivos.)

Nos momentos de distração, eu pensava em propor que a prefeitura transformasse aquelas ruas em vias de mão única. Iríamos pela João Antônio e voltaríamos pela Antônio João. Seria quase um poema concreto. Na maioria das vezes, eu entraria na contra mão.

Agora, moro na rua Joaquim de Paula Xavier, mas a rápida que leva ao centro é praticamente cruzada pela minha rua e tem o nome de Paula Xavier. Realmente, a cidade foi feita para nos confundir.

Em Curitiba, existe um mistério insondável para mim: saber qual das duas marechais é a rua a que devo ir. Para meu azar, elas se cruzam. Também nunca sei qual é a Avenida dos Estados e qual a Estados Unidos, embora estejam em posições muito distintas. Em uma delas há um restaurante alemão da melhor qualidade, mas nunca pude voltar lá.

Devia haver um decreto presidencial ou operacional (já que nosso presidente é operário) proibindo que se repetissem palavras nos nomes de rua. Ou exigindo que se usem numerais, tal como acontece na terra de Luiz Vilela, Ituiutaba, que serviu de modelo para Nova Iorque, segundo o parecer abalizado de moradores daquela modesta região mineira.

Sou perseguido por essas possibilidades de confusão. Minha editora, no Rio, fica em São Cristóvão, mas eu sempre indico ao taxista o bairro de São Gonçalo, por pura estupidez. Quando dou o nome da rua, ele me chama a atenção para o fato de tal endereço ser impossível. E diz que a rua Argentina fica em São Cristóvão. Como existe também a praça Argentina nesse bairro, nunca sabia o lugar exato da editora, mas agora só viajo com endereço completo na carteira. Mesmo assim, alguns motoristas mais teimosos do que eu me levam para a praça. Só ao chegarem lá se dão conta de que não há nenhuma editora ali, então se informam direito, consultam mapas e me conduzem, constrangidos, ao lugar certo. Eu pago mais caro pela corrida, mas saio triunfante. Até mesmo um motorista de táxi, um carioca malandro, perde-se em sua cidade.

Por minha incapacidade de localização, elegi como melhor romance de Franz Kafka o maravilhoso O castelo, história de um agrimensor que chega a uma aldeia e tenta encontrar o prédio onde está a administração. Tudo é de uma rotina e de um realismo assustadores, mas K. não consegue alcançar o castelo, que se move magicamente na paisagem. O homem da certeza geográfica, o agrimensor afeito às medidas físicas, não mantém uma relação confiável com a cidade móvel. Por que querer que o mundo seja fiel a mim, um pobre leitor com a cabeça cheia de informações supérfluas, aprendidas ao acaso na leitura de livros literários? Todos tomam O castelo como alegoria da burocracia ou de Deus, eu o leio apenas como uma prova da natureza traiçoeira do real.

Numa época em que algumas pessoas andaram caindo no poço de elevadores por distração, surgiram uns cartazes: antes de entrar verifique se o elevador se encontra parado no andar. Temendo coisa pior, propus que se mudassem a redação deste aviso para: ao sair do elevador, verifique se o andar se encontra parado.

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