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Passamos o Natal em Pea­­biru, cidade onde meu pai e minha infância estão enterrados. Natal é aquele negócio de sempre – comilança e bebeção sem fim, em um estado de euforia meio falso. Viagem de volta para a cidade da gente também tem as suas convenções – comer na casa de parentes, visitar amigos e falar de coisas de 30 anos atrás, rindo de nossos erros juvenis etc. Não existe época mais estereotipada do que esta.

Assim que chegamos, uma refeição nos esperava, um almoço repleto de calorias, que ainda turbinamos, já no começo da tarde, com um bolo doce de milho verde. É que estamos no final da temporada de milho verde, e minha mãe conseguiu desenterrar uma receita antiga. Este bolo remonta a épocas ancestrais, e fazia muitos anos que eu não provava dele. É algo bem simples: milho verde batido no liquidificador (antes era ralado) junto com leite, pedaços de queijo de fazenda e azeite e margarina, até tudo ficar cremoso, com um pouco de sal e açúcar. A massa áspera, sem ser peneirada, vai ao forno em uma forma baixa, não devendo ultrapassar um dedo de altura. Retira-se quando o fundo estiver levemente tostado. Com um café preto, não há nada mais saboroso.

Café que, na casa de minha mãe, é feito à moda antiga. Ferve-se água já com açúcar numa chaleira, despejando-a no coador de pano, onde está o pó. Café forte, que já foi bem adocicado, mas que ultimamente está mais suave.

Antes era torrado no quintal, num torrefador manual, em forma de panela de fazer pipoca, só que bem maior e com uma bola que rodava acionada por manivela engatada na extremidade do cabo. Esta engenhoca ia ao fogo a lenha. Quando os grãos atingiam o grau ideal de torrefação, ainda soltando muita fumaça, eles eram postos numa peneira, até esfriar. Toda manhã, minha mãe ou al­­gum de nós pegava a lata de café e ia para um puxado nos fundos, para moer os grãos (os de café, lo­­gicamente) numa máquina ma­­nual. O cheiro matinal do café sendo coado é ainda um dos me­­lhores perfumes que conheci, competindo com o do pão caseiro recém-assado. São odores de um tempo também enterrado.

Tanto o bolo de milho verde (agora feito no liquidificador e no forno a gás) quanto o café caipira (não mais torrado nem moído em casa) são versões daquele mundo rústico que a industrialização rapidamente tornou obsoleto. Meio como caricatura, voltamos a ele. Aliás, toda encenação de um passado brasileiro, rural e autossuficiente não passa de um teatro. Revivemos como farsas aquelas experiências, forçando traços de identidade. O meu paladar para este café está contaminado por tantas outras coisas, como, por exemplo, pelos cafés maravilhosos que gosto de tomar na rede Starbucks.

Retorno a este cardápio da roça da mesma forma que viajo à cidade da infância, para passar uns dias, para reviver alguns fiapos de episódios que, se remetem a uma época de intensidades afetivas, também mostram que aquelas são águas muito mais do que passadas.

Por falar em água, este feriado foi de muita chuva, o que não diminuiu em quase nada o calor, embora tenha alterado a memória de outros natais. Nem o clima é o mesmo daqueles que ficaram retidos na alfândega do antigamente. Houve uma falsificação ainda maior na data. Natal era período de sol, e de calor, o que obrigava os Papais Noéis a usarem pesadas roupas de inverno feitas com tecidos leves. Agora, eles deveriam era portar uma capa de chuva. O fato é que perdemos até mesmo a identidade solar do período.

Depois de visitar o cemitério, de frequentar a casa de alguns parentes e de rememorar nossas juventudes com os sobreviventes, cheguei à casa de minha mãe na tarde anterior ao Natal. Outrora, este era um momento de grandes preparativos. Apareciam parentes de outros estados. As mesas acabavam armadas no quintal, as mulheres e os homens se irmanavam no trabalho de preparação dos pratos, pois pouca coisa vinha pronta.

Nesta véspera, não se via movimentação alguma. Apenas nós havíamos feito a viagem natalina. Minha mãe estava com a casa fechada, e o silêncio indicava uma idade de cansaços. Quando abrimos a porta, entrando direto na sala, vi uma cena surreal. Minha mãe corria atrás de um frango imenso, que subia pelas escadas que levam a outra sala. Meus filhos gritaram de medo. Nunca tinham convivido de forma íntima com um frango, e este cacarejava femininamente, passando de um cômodo a outro. Quando tomou o rumo do quarto onde estávamos instalados, pensei que poderia ajudar minha mãe, eu que pouco a tenho ajudado, e investi sobre o bicho, mas ele me deu uma driblada memorável.

Agora já era uma questão de honra capturar o fugitivo. Meu pa­­drasto tinha trazido do sítio este frango, deixara-o amarrado na garagem, e ele fugira. Quando consegui encurralar o maldito no boxe do banheiro, dei um bote certeiro e segurei os seus dois pés de uma vez. Camila e Antônio vibraram com a destreza do pai deles.

Como se fosse um troféu, en­­treguei o frango para minha mãe. Ela se isolou na lavanderia e destroncou o pescoço do coitado. Depois o escaldou em água quente, retirou as penas, sapecou as penugens na chama do fogão a gás, abriu a carcaça e a repartiu em pedaços. Eu adorava ficar com o jogo. Depois de limpar a pe­­ça com dentes minuciosos, brin­­cava com um de meus ir­­mãos. Cada um segurava um lado do osso do peito do frango, e então puxávamos para ver quem ficava com a parte maior.

Acabamos não comendo aquela carne, logo congelada, pois havia outros pratos disponíveis. Mas a perseguição e o cerco ao animal foram as coisas mais verdadeiras deste Natal, permitindo um contato com o ritual primitivo da caça, apesar do tom caricaturesco próprio do período.

* * * * *

*A titular da coluna, Marleth Silva, está de férias e volta dia 6 de fevereiro.

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