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Numa época submetida alegremente à ditadura do entretenimento, o exercício da crítica ficará cada vez mais a cargo dos próprios escritores. Se esse escritor que se dedica à produção alheia é um dos mais importantes do seu tempo, os seus artigos cumprem também uma função ordenadora, reunindo uma família espiritual. É este duplo valor, respeito à literatura e constituição de uma biblioteca perene, que encontramos em Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005), do sul-africano J.M. Coetzee.

Escritos principalmente para a New York Review of Books, esses ensaios não se rendem à ligeireza de pensamento que tomou de assalto a cultura. Para falar de um livro, Coetzee passa por outros momentos do autor, analisa longamente os episódios, assinala acertos e erros, tudo numa linguagem altamente respeitosa, sem a menor pressa de se livrar da incumbência.

Se o título (Mecanismos Internos) remete ao trabalho de desmontagem do texto, de estudo das peças de seu maquinismo, ele também permite outra leitura: quem assina estes ensaios é um romancista que conhece a literatura por dentro. Este saber do ofício dá a Coetzee uma autoridade crítica que ele usa discretamente.

A maior parte de seus ensaios está centrada nas traduções para o inglês de autores de língua alemã, hoje clássicos da modernidade. Aqui, Coetzee não apenas verifica a validade das obras, mas também confere as traduções, apontando problemas técnicos. Esses comentários sobre as traduções, dirigidos ao leitor de língua inglesa, poderiam ser omitidos na versão para o português, aumentando assim a fluência da leitura.

O outro conjunto de reflexões focaliza majoritariamente os autores de língua inglesa, contemporâneos ou mestres da modernidade, centrais ou periféricos, vistos também nesta perspectiva hierárquica, fundamento de todo trabalho crítico: Coetzee lê o livro lançado ou relançado em face dos momentos mais altos do autor, numa reverência não ao artista, mas à literatura.

O seu método crítico está baseado nesse respeito e na capacidade de incluir-se nas obras alheias. Ele apresenta o enredo e a linguagem, acompanha a evolução do livro e da obra como um todo, aderindo de forma amorosa a ela, para logo se afastar e julgá-la. Como romancista, ele resume de maneira criativa os livros, cita trechos, fazendo com que o leitor se sinta nos domínios da literatura.

Outro de seus recursos é apresentar a biografia do autor, entendendo-o dentro de sua época, para ver como ele a transcendeu. Significativamente, um dos ensaios versa sobre os biógrafos de William Faulkner, esse autor formalmente progressista que sempre teve uma visão crítica do progresso. Ao tentar compreender a obra e o homem, a linguagem como resposta às pressões sociais e históricas, o crítico tenta ver de que maneira o individual ganha um sentido maior: o artista "mediante a faculdade demiúrgica da imaginação, transforma seus pequenos problemas pessoais em questões de alcance universal" (p.261).

É nesse sentido que a biografia do autor conta para a crítica, mas sempre com a ressalva de jamais confundir o autor nomimal com o narrador/personagem, mesmo quando os dois exibem o mesmo nome, tal como acontece em Complô contra a América, de Philip Roth: "As histórias que começamos a escrever [Coetzee se insere nesta primeira pessoa do plural] muitas vezes começam a escrever-se sozinhas; a partir de então sua veracidade ou falsidade nos escapa das mãos, e as declarações de intenção do autor perdem qualquer peso" (p.276). Essa declaração sobre Philip Roth é um alerta de leitura para a trilogia autobiográfica que o próprio Coetzee escreveu: Infância, Juventude e Verão.

Se o ganhador do Prêmio Nobel de literatura de 2003 é conhecido por tomar o ensaio e a ficção como irmãos gêmeos, tal como podemos ver em seus romances, aqui, por trás do crítico, encontramos o romancista. Melhor dizendo, encontramos toda uma literatura, porque é isso um escritor: motor oculto de uma linguagem atemporal.

Serviço: Mecanismos Internos: Ensaios sobre Literatura (2000-2005) , de J.M. Coetzee. Tradução de Sergio Flaksman. Companhia das Letras, 360 páginas, R$ 49. Ensaio.

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