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Nunca acabaremos com a corrupção, e ninguém de fato quer isso. Nada nos impede, no entanto, de recordar velhos hábitos, de corruptos que eram pessoas mais ilustradas, com um pouco de pudor. O que se perdeu foi o pudor. Até mesmo um corrupto e seu corruptor devem se distinguir por um mínimo de classe, demonstrando assim que, apesar de estarem praticando algo ilícito, eles o fazem com algum pejo. E eis algumas palavras que caíram em desuso: pudor, pejo e classe. A corrupção atingiu um índice pornográfico, e é isto que a torna insuportável. Não vamos exigir que nossos honestos homens públicos se tornem de fato honestos, basta que não percam a pose e controlem instintos mercenários, camuflando-os.

O filme Casablanca, que formou gerações, é o retrato da corrupção refinada. Os fugitivos do regime nazista instalavam-se na cidade de Casablanca, no Marrocos francês, território neutro, em busca de um visto para a América, via Lisboa. Havia formas de comprar este visto, usando os serviços de desclassificados falsificadores, como o gordo Ferrari, dono do Café Papagaio Azul. O antípoda era o charmoso proprietário do Rick’s Café (Humphrey Bogart), que fugia não do nazismo, mas de uma grande paixão – ambos, nazismo e paixão, têm o mesmo poder exterminador. Rick vive com um fundo musical maravilhoso ("As Time Goes By") e se reencontra com a mulher amada (Ingrid Bergman) e seu distinto marido – o tcheco Victor Laszlo, um herói internacional. Em oposição aos vendedores de vistos, Rick é o gentleman em pessoa. Prepara a fuga do casal e fica em Casablanca.

Ele consegue isso usando um método de corrupção que traz as marcas de sua nobreza. Deixa que o chefe da polícia local, o Capitão Renault, ganhe sempre no cassino que funciona reservadamente em seu bar. Não precisa oferecer dinheiro de forma desrespeitosa à maior autoridade local, tem meios sutis para fazer a operação, permitindo que o outro sempre vença na roleta. A corrupção não ofende, porque charmosa, e cria uma amizade incondicional entre os dois. O capitão chega a inocentar Rick da morte de uma autoridade alemã que tentava capturar Laszlo.

Casablanca devia ser peça obrigatória na formação do político nacional. Os pais corruptos, que querem legar os negócios aos filhos e que, por problemas de origem não tiveram boa educação, poderiam recomendar a seu herdeiro moral este filme.

Não tão charmosa, mas também exemplar, era a forma como os diplomatas americanos concediam vistos aos judeus na Polônia. Isaac Bashevis Singer, que conseguiu fugir a tempo de Varsóvia, sempre incorruptível (e esta é uma das razões da qualidade literária de sua obra), desmascara em vários de seus romances este processo. Em Sosha (Francis, 2005), há um bom exemplo: "Um dos altos funcionários do consulado americano em Varsóvia podia ser subornado para se conseguir, por fora da cota, vistos para pretensos rabinos, professores e falsos parentes. A maneira de transmitir o suborno era jogar pôquer e permitir que o funcionário ganhasse uma alta soma" (p.32). Esta solução diplomática também é exemplo da corrupção com estilo, sem os constrangimentos de malas de dinheiro, saques em bancos com funcionários de olhar irônico e demais métodos grosseiros de hoje. Para todos os efeitos, você não é bom no pôquer e sempre perde. Ninguém vai estranhar que nossos agentes públicos, hábeis na política, invariavelmente ganhem. E está salva a dignidade de todos.

Talvez você esteja reclamando que meus exemplos são nostálgicos demais. Naquela época, era possível este tipo de elegância durante uma negociação tão sórdida. Eu mesmo pensava isso, mas um caso recente me demonstrou que ainda é possível contornar a pornografia da corrupção, cobrindo-a com vestes pudicas.

Todo mundo já levou uma "mordida" de guarda rodoviário. Esta é a corrupção mais corriqueira, que atinge a maioria dos cidadãos motorizados. No geral, a conversa é aberta. Quanto você quer para não me multar? E o honesto funcionário dá o preço de acordo com a multa para aquela infração. Mas um jovem de boa família, flagrado em alta velocidade, sabendo que não devia humilhar ninguém, colocou, enquanto o guarda se aproximava, uma cédula no meio dos documentos.

– Aposto 50 reais que o senhor não vai querer me multar por uma coisinha dessa.

Profissional ciente de sua respeitabilidade, o guarda levou os documentos para a viatura, conferiu tudo com tranqüilidade, voltou ao carro do rapaz, averiguou se a placa batia com o que constava no documento, pediu para que ele ligasse as luzes e devolveu apenas os documentos ao motorista.

– Boa viagem – ele ainda disse, com sua moral intacta.

Eis aí uma forma civilizada de conviver com os pequenos e os grandes ilícitos.

O problema da atual crise de moralidade é que, nas últimas décadas, houve uma mudança no perfil dos agentes públicos, alistados agora, não raro, no submundo. No mais importante retrato de JK, o de Autran Dourado, que foi secretário de comunicação do presidente e escreveu sobre este período no imperdível Gaiola Aberta (Rocco, 2000), há a transcrição de um conselho dado ao presidente por um de seus homens fortes, o poeta Augusto Frederico Schmidt, responsável pelo grande número de escritores naquela administração, que não lhe garantiu a incorruptibilidade, mas lhe deu status. Relembra Autran: "Logo no início do governo JK, o Schmidt aconselhou-o a conviver com gente mais culta e inteligente. Cafajeste é para campanha, disse ele" (p. 167).

A política perdeu o glamour porque os cafajestes agora não são apenas para as campanhas.

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