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| Foto: Jewel Samad/AFP

Nas entrevistas, revela-se um terceiro eu do escritor, alguém que é a soma de quem escreveu os livros (o autor empírico) e de seus narradores (as várias versões do autor implícito). Assim, as opiniões deste gênero de texto remetem tanto ao autor quanto aos seus personagens, fundando uma terceira identidade. Embora pertencentes ao domínio da verdade, as entrevistas transitam também pela ficção, e ajudam a construir uma mitologia pessoal.

Reedição de um antigo (de 1985) e longo diálogo, acrescido agora por outro mais restrito (de 2010), Conversas com Vargas Llosa: Antes e Depois do Nobel, de Ricardo Setti (Panda Books, 2011), apresenta as ideias e a gênese de algumas das obras do autor peruano. Visto como um reacionário pelos intelectuais de esquerda depois de seu rompimento com Cuba, Vargas Llosa (foto à dir.) é um prosador sofisticado e um homem público corajoso, o que faz de sua trajetória um objeto de grande interesse. Com um conhecimento do autor e do contexto social em que sua obra foi produzida, Ricardo Setti o cutuca com vara curta.

Sobressai, em primeiro plano, afora os depoimentos sobre os seus livros, uma defesa incondicional da literatura e do livre-arbítrio, que para o escritor são uma coisa só. A literatura só prospera onde há a liberdade de pensar. E é com esta liberdade que ele trata de todas as questões de seu tempo. Confessando uma influência da postura participativa de Jean-Paul Sartre, que seria uma espécie de modelo de escritor para ele, Vargas Llosa se coloca sempre em posição vulnerável ao falar sobre tudo, principalmente sobre política.

Na primeira parte do livro, a mais rica, há um predomínio dos temas literários. É que ela trata dos caminhos seguidos pelo ficcionista. Talvez sua confissão mais importante, nesta área, seja o fato se assumir como um realista, tanto na temática quanto na linguagem. Num livro histórico ou num contemporâneo, de fundo autobiográfico ou totalmente distante de sua vida, a sua base é sempre o real, o que talvez incomode o outro grupo de detratores de sua obra, os puristas, que defendem uma estética afastada do chão da experiência. Ele afirma: "Para inventar, sempre preciso partir de uma realidade concreta" (p.65). Invenção e referência aos fatos não são conceitos antípodas, e se complementam. Esta compreensão o leva a concluir, quando fala da presença de seu próprio nome num romance, que "o narrador de uma história não é nunca o autor, ainda quando apareça com o nome, o sobrenome e a própria vida do autor. É sempre uma invenção, alguém em quem o autor se transforma" (p.80). Este é o conceito fundador da autoficção. Tocada pela linguagem e pela estrutura literárias, toda realidade adquire uma autonomia artística. Daí ele concluir que "a autobiografia mais autêntica de um romancista são seus romances" (p.83).

A ficção assim entendida assume um lugar outro ao mesmo tempo em que também remete ao real. E é esta dupla tarefa, de imaginação e de desvelamento, que caracteriza este autor que se definiu como um "canibal da realidade", por absorver tudo no momento da criação. Uma reflexão sua, depois do Nobel, na parte mais política do livro, confirma tais ideias: "um escritor não deve se dissociar da história que está sendo escrita ao seu redor" (p.196). Embora ele fale bastante de questões sociais e eleitorais, não é em tal terreno que encontramos o escritor político, mas nesse processo de criação suscetível às interferências do real. É neste domínio que o escritor faz política, resgatando pela imaginação os fatos que o afetaram. E poucos escritores contemporâneos conseguiram fazer isso de forma tão independente quanto Vargas Llosa.

Serviço: Conversas com Vargas Llosa: Antes e Depois do Nobel. Ricardo Setti. Panda Books, 2011. 232 páginas. Entrevistas.

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