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O jardineiro esteve em casa na semana passada, e gastou o dia cuidando das plantas. Os bambuzinhos que ficam ao lado da entrada do carro foram podados, mais do que isso, foram decepados, adquirindo um aspecto meio ameaçador. Minha mulher explicou que eles estavam crescendo demais, sujavam a calçada e atrapalhavam a passagem. Aqui, tudo vira uma selva muito rapidamente. Por isso o trabalho contínuo do jardineiro, que nos ajuda a controlar as explosões das plantas. Ele também cortou as folhas velhas das palmeiras do quintal. Tirou as plantas daninhas do gramado, aparando-o. Juliana foi a uma floricultura e trouxe muitas flores, que espalhou pelo quintal e pelos vasos que ficam no pátio. Os passarinhos, no final da tarde, ciscavam a grama para se banquetear com os insetos.

Depois destes cuidados com o jardim, vem um cheiro bom de mato. Eu deixo a porta da biblioteca aberta para aproveitar esses eflúvios campestres, que me devolvem ao passado, a casas rurais onde dormi.

O jardineiro é meticuloso, mas deixou uma planta invasora que me fascina e me incomoda.

Quando compramos este lote, dez anos atrás, o bairro ainda tinha muitas áreas não-construídas, e a escritura dizia tratar-se de um terreno na zona rural. Deste passado agrícola da região não sobrou muita coisa. Havia uns terrenos com árvores exóticas nos fundos, mas o proprietário mandou derrubar para aumentar seu valor imobiliário. Vendeu, plantaram-se casas e um muro muito alto.

Lembro-me de uma cena triste, digna de um dos sonhos de Akira Kurosawa. No final da tarde, o meu muro foi tomado por passarinhos, postados todos para o terreno pelado, estranhando não encontrar mais as árvores onde pousavam. Para minha sorte, e a deles, uma das vizinhas meio que abandonou a casa e o seu pomar, na época pequeno, e que hoje está imenso, totalmente tomado pelo mato. É ali que param agora os pássaros.

A cidade cresce, construções vão se espalhando por tudo, afundando suas raízes de concreto e ferro e pedra num solo já sem memória rural. Deste passado, no entanto, ainda chegam algumas mensagens cifradas.

Faz mais ou menos um mês que venho notando as espadas flexíveis de palmas imemoriais, que nunca plantamos. Elas se elevam dissonantemente no meio da grama. O jardineiro tirou as que estavam atrapalhando, mas uma delas ficou ao lado da biblioteca, no meio das pedras e de outras plantas altas. Ela está soltando as suas flores. Devem ser brancas.

Os bulbos das palmas ficam muito tempo na terra, liberando as plantas neste período; são obstinados e não respeitam nossos projetos do jardim. Irrompem e lançam seu pendão carregado de flores. Arrancamos as palmas, cavamos em busca dos bulbos, mas sempre ficam alguns deles para o retorno no próximo ano. Acostumei-me com esta pequena ressurreição. Quando surgem as palmas, sei que é época de finados.

Morando na rua que levava ao cemitério, lá em Peabiru, tínhamos um jardim bem extenso, com cerca baixa, e minha mãe cultivava palmas. Meus irmãos e eu aproveitávamos a data para colher estas flores e vender aos que desciam para o cemitério. Ficávamos no jardim a manhã toda, atendendo os clientes. Aproveitávamos a disponibilidade para vender também velas. E assim passávamos o dia de finados. Eu tinha um pouco de remorso, meu pai estava enterrado ali no cemitério, e eu ficava alegre naquele dia, ganhando meu dinheiro.

Fazíamos feixes com três palmas, cortadas na hora, e entregávamos para senhoras com roupas roceiras. Na semana anterior, meu padrasto já tinha recebido muitas encomendas para pintar túmulos. Ele descia todos os dias ao cemitério com uma lata de tinta a óleo prata (todos queriam túmulos pintados de prata), pincéis, solventes. Nós ajudávamos mais na limpeza, na preparação das carneiras. Era bonito de ver a movimentação no cemitério. Encontrávamos pessoas que tinham ido embora, e que voltavam para zelar da memória dos entes queridos. Mulheres passavam com baldes de água. Crianças corriam. Homens reformavam os túmulos. Um verdadeiro canteiro de obras.

Meio melancólico, eu percorria as ruelas vendo fotos dos mortos, lendo as inscrições, analisando a qualidade dos materiais empregados. Na hora de ir embora, limpávamos bem os sapatos, havia o medo de levar para casa aquela terra onde haveria com certeza moléculas de gente morta.

Este mundo acabou. Hoje, há zeladoras de túmulo em Peabiru. Paga-se uma taxa mensal e elas cuidam de tudo. Lavam, enceram, podam as plantas. Minha mãe contratou uma dessas mulheres, e todas as vezes que visito o túmulo de meu pai, em qualquer época do ano, eu encontro as coisas em ordem. As lajotinhas vermelhas estão sempre enceradas, o vidro da capelinha limpo, as flores artificiais parecem novas.

Meu padrasto prefere cuidar sozinho do túmulo dos pais dele, e todos os domingos de manhã segue ao cemitério para a faxina. É um dos poucos que ainda se dedica a esta atividade, talvez se lembrando de quando ganhávamos algum dinheiro com essas nossas atividades operárias. Trabalhávamos sob a copa das árvores frondosas, quase em clima de piquenique.

É isso que me diz a palma renascida aqui ao lado da biblioteca. Que, em algum lugar do passado, estou reformando túmulos nas vésperas deste finado, e que no dia dos mortos venderei flores recém-colhidas e velas. E até já faço planos de comprar um quedes com o dinheiro que conseguirei.

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