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Claraboia

José Saramago. Companhia das Letras, 384 págs., R$32,20. Romance.

Os originais da juventude de um grande autor dificilmente guardam interesse para quem quer apenas prazer estético. Na maior parte das vezes, eles têm valor histórico-crítico, permitindo que se compreenda melhor o processo de construção de uma obra. Claraboia (Companhia das Letras, 2011), de José Saramago (1922-2010), romance escrito em 1952 e mantido inédito até agora, apresenta questões que identificarão o autor, como a participação política, a cegueira social, o apreço pelas dissertações pseudofilosóficas, as alegorias coletivistas e as citações de frases feitas. Mas Claraboia é também um de seus melhores livros.

Traz a força criadora do jovem autor que já dominava seus instrumentos. A principal marca deste romance é uma maior leveza narrativa, que Saramago vai perder depois, tanto por opção estilística quanto por cansaço físico. Seus romances mais recentes traziam uma linguagem arrastada, tornando a leitura muitas vezes penosa. Em Claraboia manifesta-se uma energia que torna o texto fluido – é como se nenhum esforço narrativo tivesse sido feito na hora da escrita.

Do ponto de vista estrutural, o romance é engenhoso. Embora isso não seja uma grande novidade, ele conta a história a partir de contrapontos de vários personagens que habitam um pequeno prédio. Assim como os barulhos cruzam as paredes, os dramas de uns interferem na existência dos outros. O principal personagem é o prédio, onde quase toda a ação se passa, fazendo com que o livro se assemelhe a O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e O Ateneu, de Raul Pompeia. Mas em Saramago há um desejo de representar algo maior, como se aquele imóvel fosse o resumo da humanidade.

O romance é um estudo sobre a possibilidade de o ser humano fundar a sua vida no amor pelos demais. É, portanto, um romance político. Nestes apartamentos pobres residem casais que se odeiam, uma amante de meia-idade mantida por um empresário rico, uma família de mulheres solitárias, vivendo à sombra de um passado artístico, um casal pobre com uma filha para encaminhar e um o sapateiro e sua mulher, que envelheceram amorosamente. Neste universo marcado pela solidariedade epidérmica entre uns e pelos rancores entre outros, surge um elemento de fora – o jovem Abel, que aluga um quarto na casa do sapateiro, logo ocupando o lugar do filho que eles não tiveram, embora Abel faça de tudo para cortar qualquer tipo de laço afetivo.

Saramago vai passando de um personagem a outro, alternando os centros da narrativa, de tal forma que conheçamos todas as pequenas vilanias acobertadas pelas pessoas. Apenas o sapateiro, que disserta sobre a necessidade de amar os seres humanos, tem uma bondade pura conquanto inócua. O interesse, o desejo, as frustrações, a consciência da decadência física e a inveja comprometem todos os comportamentos.

O olho do escritor funciona como uma claraboia, por meio da qual se enxerga o interior das casas e das pessoas. Magistralmente construído, este segundo romance de Saramago guarda uma visão ácida e terna do ser humano, num pessimismo provisório. Abel se faz porta-voz do escritor, ao dizer, depois de ter se envolvido numa intriga que o obriga a se mudar, que ainda não é o tempo de se construir uma existência sobre o amor (amor geral pela humanidade). O ódio vence, mas o livro termina com uma reticência depois da palavra ainda, o que revela a crença, própria do pensamento de esquerda que caracterizou o autor, em um mundo menos imperfeito.

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