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Entre as muitas oposições que a espécie humana comporta, uma me é cara. Podemos dividir as pessoas em lentas e apressadas. A impressão que tenho é de que os apressados são mais repreendidos, basta ver a popularidade de provérbios como: "a pressa é inimiga da perfeição" ou "quem tem pressa come cru". O apressadinho é um ser socialmente mal visto. Quando se torna chefe, vira um perigo. Quer tudo para ontem. Não tem paciência para explicar a situação de maneira detalhada. Deixa ordens subentendidas em suas falas. Faz meia dúzia de coisas ao mesmo tempo. Um horror.

No serviço público, pressa é heresia. Mandar mais um ofício, consultar o setor tal, pegar a assinatura de chefes e chefetes, devolver ao interessado para ouvi-lo e assim se passa o tempo até a aposentadoria ("Será que este mês teremos aumento salarial?"). O funcionalismo público como um todo, e não só a justiça, é lento, e não há indícios de que seja perfeito.

Contra a rapidez recaem ainda outras acusações. Por exemplo: a idéia de que uma decisão apressada é sempre errônea. Devemos pensar várias vezes sobre o assunto, recorrer a pessoas ou à própria memória, fazer cálculos para só então expressar nossa opinião, abrir a bocona cheia de dentes, mandar a resposta àquele e-mail desaforado. Sensatez é lentidão.

Assim, feito às pressas é sinônimo de mal feito. Então gastemos meses em alguma tarefa, sejamos rigorosos, esculpindo a madeira com minúcias orientais, cuidando com vagar do jardim de casa, começando aquele almoço especial várias horas antes, até mesmo no dia anterior, quando prepararemos parte dos pratos. O homem meticuloso é um ourives da perenidade, dedica-se ao mundo com a devoção de quem trabalha em algo destinado a durar.

Para o senso comum, o apressadinho não passaria de um relaxado. Não se dedica com tédio a nenhuma tarefa, não aproveita o processo, empreende tudo com um olho gordo na conclusão, num imediatismo total. Não é para ser admirado. Geralmente tido como atormentado, prende-se a um impulso para a realização de coisas. Quando subitamente está com tempo livre, ele inventa as obrigações mais absurdas, como pintar a casa num final de semana, ou organizar todos os documentos das várias gavetas, embora há muito não recorra a eles. O importante é ter no que se ocupar, para que sua pressa se manifeste como dádiva. E, mal ele começa a mexer nas pilhas de papéis, sabe que terá que terminar logo, é preciso correr, não deixar para depois, aproveitar cada minuto.

O apressado não desperdiça oportunidades de trabalho. Anda com vários livros na bolsa ou no carro. O laptop está sempre a postos. E também o celular. Mesmo quando vai passar uns dias na praia ele não descansa. Na estrada, desrespeita a velocidade máxima para chegar logo, como se estivesse atrasado para a reunião. Não para nem para o lanche ("Vocês não trouxeram nada para comer e beber?"). E ele mastiga uma fruta enquanto dirige. Ao chegar à praia, aproveita, se a casa é própria, para resolver problemas de manutenção ("E se trocássemos o telhado inteiro?"). E as férias da família transcorrem em meio a uma obra de reforma.

Viver é igual a fazer. Se não tem nada para resolver no momento de espera da consulta médica ("O senhor deve diminuir o ritmo"), abaixa-se e arruma o cadarço do sapato, deixando as pontas simétricas.

Não entende os contemplativos. Passar horas diante de um filme? Nem pensar. Ele usa o controle remoto com uma velocidade incrível. Vê assim pedaços de todos os programas. Só ele tem o dom da ubiqüidade televisiva, está ao mesmo tempo em todos os canais.

Levanta cedo. Dorme pouco porque, bem, tem que terminar aquele relatório sobre a variação cambial para a reunião da semana que vem. Está sempre adiantando as suas tarefas. Vai que aconteça algo e ele não possa se dedicar a isso.

Responde todos os e-mails, e faz isso como se estes fossem importantes. As pessoas merecem atenção, mesmo que em poucas palavras ("É o meu jeito. E e-mail não é algo para dissertações, temos que ir ao ponto").

A era da informática é o ambiente natural deste homem que se envolve em tudo, aprendendo de culinária a noções de astronomia, lendo textos especializados e ainda dando conta de uma ou outra programação cultural. Passa quase correndo pelas salas de exposição, informando-se sobre o artista antes, pela wikipédia, para não perder tempo na visita ao museu.

Contrariando os preconceitos, ele faz as coisas com uma perfeição apressada, em sintonia com os tempos tecnológicos, cultivando um olhar multifocal e podendo assim dar respostas quase que automaticamente, e sempre as mais corretas. Apressar-se é aperfeiçoar-se. Por mais que o meditativo revolva sua biblioteca interior, por mais que raciocine, pondere, consulte as leis e os especialistas, escreva antes o que vai dizer, revise tudo centenas de vezes, ele não consegue ter uma visão de conjunto que lhe permita a melhor resposta.

O homem lento perdeu a sintonia com o presente. Precisaria de uma eternidade para ter o grau de agudeza analítica do apressado, que sempre se dispersa em todas as direções e assim potencializa o instante. O fugaz instante.

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